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Cultura capixaba perde dois ícones no mesmo dia

Rainha do Congo, Dona Astrogilda, e o cineasta Orlando Bomfim Netto faleceram nesta segunda-feira

Gabriel Lordello/Leonardo Sá

A semana começou com notícias duras para a cultura do Espírito Santo. Faleceram dois de seus grandes ícones: Dona Astrogilda, Rainha do Congo, de Vila do Riacho, em Aracruz, norte do Estado, e Orlando Bomfim Netto, um dos expoentes da produção cinematográfica capixaba. Orlando faleceu de pneumonia aos 80 anos, e Dona Astrogilda havia completado em julho 88 anos.

A Comissão Espírito-Santense de Folclore lamentou a partida de ambos e ressaltou o legado deixado. “De Orlando, o zelo técnico, poético e profícuo com que registrou a cultura popular capixaba, em especial tesouros do nosso folclore, custodiados no acervo de seus afortunados documentários. Dona Astrogilda entrega-nos, para que a guardemos e a disseminemos, sua energia, a luz que a transformou num símbolo indelével do congo, esta soberba manifestação de nossa cultura popular. Despediram-se, a uma só vez, dois sagrados ícones”.

As mortes geraram manifestações de pesar do governador Renato Casagrande, do secretário Estadual de Cultura, Fabricio Noronha, e de diversas pessoas e entidades da cultura capixaba. Foi decretado luto oficial de três dias.

O príncipe do cinema

Filho do militante comunista capixaba Orlando Bomfim Júnior, desaparecido político pela ditadura em 1975, Netto nasceu em Minas Gerais, iniciou sua carreira como cineasta no Rio de Janeiro, mas viveu e produziu cinema por muitas décadas no Espírito Santo, além de ter atuado no movimento cineclubista.

“Ele sempre esteve presente na formulação de políticas públicas para o audiovisual e sempre militou politicamente pelo seguimento”, lembra Vitor Graize, cineasta e produtor da Pique-Bandeira Filmes, que restaurou obras de Orlando nos últimos anos. Netto atuou também na sociedade civil, tendo sido fundador da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas (ABD), primeiro presidente da ABD Capixaba e membro do Conselho Estadual de Cultura.

Também teve destaque como gestor público na área, tendo sido diretor do Departamento Estadual de Cultura (DEC), nos anos 80, e participado no início dos anos 90 na criação da Lei Rubem Braga em Vitória, que foi por muitos anos uma das mais importantes do Espírito Santo. Também foi diretor da TV Educativa no Estado.

Leonardo Sá

“É uma referência para a gente. Deixou um legado de imagens e filmes, além da formulação de políticas culturais. Criou um imaginário visual sobre o Espírito Santo, com uma leitura em que destaca a luta política pela liberdade”, aponta Vitor Graize.

O professor, cineasta e cineclubista Marcos Valério Guimarães lembra da atuação importante de Orlando Bomfim Netto, amigo e parceiro em diversos projetos culturais. “Como cineasta e artista, produziu toda uma filmografia e iconografia da cultura num momento delicado e singular, nas décadas de 70 e 80, quando havia resistência à ditadura e repressão do livre pensar e da liberdade de expressão”, ressalta. “Foi um grande mestre que guardarei com imenso carinho e saudades”.

O cineasta registrou imagens e histórias importantíssimas, como o desastre ecológico de Itaúnas, o Ticumbi, as paneleiras de Goiabeiras, a atuação do ecologista Augusto Ruschi e a imigração italiana em Santa Teresa.

Marcos Valério filmou A Palavra do Autor, documentário em que Orlando conta sobre sua trajetória de vida, paixão pelo cinema e produção cinematográfica.

A Rainha do Congo

Assim como Orlando Bomfim Netto, Dona Astrogilda foi uma figura muito querida e com importante contribuição para a cultura popular capixaba. 

A professora Magda Barcellos, amiga e ex-dançarina do congo, lembra o papel fundamental de Astrogilda não apenas na cultura popular, comandando o congo e contribuindo para o resgate do folguedo local conhecido como ramagem, mas também na organização da comunidade e no apoio aos moradores tanto nas questões materiais como no apoio espiritual.

“O povo de Vila do Riacho vai passar por um momento difícil, pois também perdeu recentemente o maestro da banda marcial. Eram ícones da comunidade, mas vão superar. Porque a cultura popular se reinventa a cada época. Dona Astrogilda deixou um grande legado, tem vários filhos e netos ligados à arte e à cultura”.

Gabriel Lordello

Magda destaca a personalidade simpática, acolhedora mas também assertiva da Rainha do Congo. “Na banda ela tinha a palavra final. Tinha um poder de palavra muito grande, nunca deixou de mandar os recados dela. Em eventos, se não concordasse com algo, pegava o microfone e dizia o que achava a políticos e organizadores. Não tinha papas na línguas, mas dizia de uma forma muito verdadeira. Tinha posicionamento.”

Em janeiro deste ano, Dona Astrogilda chegou a ficar internada por 19 dias por conta de Covid-19, mas se recuperou. Porém, veio a falecer em decorrência de complicações por conta da diabetes.

Memória e legados

Felizmente, ao contrário do que por vezes acontece com grandes nomes da nossa cultura, Orlando e Astrogilda receberam homenagens e reconhecimentos em vida.

A Rainha do Congo dá nome ao Coletivo de Mulheres Dona Astrogilda, que surgiu em 2018 após a primeira manifestação #EleNão contra a eleição de Jair Bolsonaro. “O nome da Dona Astrogilda foi nossa escolha porque queríamos um nome forte, de uma mulher que representasse o município de Aracruz em várias áreas”, conta Leilany Santos Moreira , uma das fundadoras. “Aí não tivemos dúvida: mulher negra, com descendência indígena também, que participava ativamente das lutas de sua comunidade, que representava a cultura de Aracruz e do Espírito Santo. Sem falar que era um doce de pessoa, uma mãezona que acolhia a todos que lhe procurava. Um exemplo para todas as mulheres do Coletivo”, diz.

A escolha foi aprovada de forma unânime e as integrantes foram à casa da Rainha do Congo para pedir permissão para uso de seu nome. “Ela nos cedeu o nome e abençoou o Coletivo”, conta Leilany.

A cantora Monique Rocha compôs uma canção em homenagem à Dona Astrogilda, que chegou a contar com sua presença num registro audiovisual.

Orlando Bomfim Netto foi homenageado pelo governo do Estado em 2019 e também no Festival de Cinema de Vitória em 2013, no Cine.Ema em 2018, e recebeu a Comenda Maurício de Oliveira em 2019 da Prefeitura de Vitória, entre outras homenagens.

O projeto “Acervo Capixaba – Orlando Bomfim, netto”, restaurou sete curta-metragens de sua autoria entre 1975 e 1985: Itaúnas, Desastre Ecológico, Tutti, Tutti, Buona Gente, propriamente buona, Mestre Pedro de Aurora, prá ficar menos custoso, Ticumbi – Canto para a liberdade, Augusto Ruschi Guainunbi, Dos Reis Magos aos Tupiniquim, produzidos no Espírito Santo, e também a produção carioca O Bondinho de Santa Tereza. As obras restauradas podem ser encontrada no YouTube da Pique-Bandeira Filmes.

As palavras do Comitê Espírito-Santense de Folclore homenageiam estes dois grandes griôs que deixam este plano numa manhã nublada em boa parte do território capixaba: “Junto a nosso lamento, não podemos deixar de acender o vislumbre desta dupla ascensão aos céus. Que seja de festa o reencontro de ambos com São Benedito e todos os santos que protegem a cultura popular capixaba. Toda nossa homenagem será pouca, mas podemos estender o manto dessa merecida reverência a todos os nossos atos, para que as gerações vindouras saibam do valor de tão preciosas memórias. Palmas que eles merecem!”.

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