quinta-feira, novembro 21, 2024
24.4 C
Vitória
quinta-feira, novembro 21, 2024
quinta-feira, novembro 21, 2024

Leia Também:

Crislayne Zeferina: ‘A insegurança pública permeia nossos corpos’

[Podcast] Liderança da juventude negra capixaba fala sobre representatividade e desafios políticos e sociais

Liderança do Território do Bem, conjunto de bairros periféricos em Vitória, Crislayne Zeferina é uma jovem ativista que tem sido importante figura na denúncia contra a violência policial, racismo, machismo e desigualdades sociais. Formada e pós-graduada em Pedagogia, ela é integrante do Coletivo Beco e do projeto Conexão Perifa, que tem atuando especialmente com mulheres e jovens nos territórios.

Confira a seguir um resumo em texto da entrevista concedida ao Século Diário, que você pode ouvir na íntegra em podcast pelo SoundCloud, no Spotify ou em seu agregador de podcast favorito.

O que é o Território do Bem?

Eu sempre falo que o Território do Bem é uma chave de potencialidades que precisam ser abertas e exploradas de uma maneira boa, com as potências que já existem nesse território, porque aqui é um novo quilombo, que pensa a partir das suas próprias narrativas, que constrói saberes populares, narrativas periféricas, banco comunitário e várias ações que são referência para todo o Brasil.

Ele é composto por nove bairros que são: Bairro da Penha, Itararé, Engenharia, Gurigica, Bonfim, Floresta, São Benedito, Jaburu, Consolação, esses bairros todos adjacentes, um do ladinho do outro. E esse nome foi implementado a partir de discussões com moradores sobre o nosso território, porque a mídia traz algo negativo, marginal, traz como Complexo da Penha. E aí quando você fala em complexo, se pensa o Complexo do Alemão, você pensa as negatividades.

Foto: Facebook

Numa reunião do Fórum Bem Maior, que agrega todos os líderes comunitários de nosso território, a gente construiu esse nome Território do Bem, como uma alternativa para dizer para essa mídia violenta que nós somos um território do bem, que estamos cercados de potencialidades. O que nós precisamos é de um empurrão, do investimento público, da ação das políticas públicas que não chegam até a gente.

Quais as dificuldades e potenciais desse território? O que mudou com a pandemia do coronavírus?

Hoje temos diversas dificuldades que permeiam esse território. Colocamos como elemento principal a falta de água. A gente tem uma luta muito grande com a Cesan [Companhia Espírito-Santense de Saneamento] e a Prefeitura Municipal de Vitória sobre a falta de água nas comunidades, um direito básico, constitucional. Estamos na Capital do Estado, com escassez de água. Você começa a perceber que Vitória não é tudo isso.

Fora a acessibilidade, há cadeirantes idosos que moram no alto do morro, não conseguem subir e descer. O adoecimento acontece junto com envelhecimento, quando você envelhece dentro da sua casa e não consegue fazer uma caminhada, descer para fazer compras.

A insegurança pública que permeia nossos corpos. Precisamos ter segurança pública, mas temos a insegurança pública.

Além de todas essas dificuldades, temos as potências que são os coletivos. A gente se organiza em coletivos e pensa como destruir essa estrutura que não nos quer dentro dela, para pensar uma estrutura aquilombada, do povo para o povo, não estruturas que vêm de uma hierarquia dizendo que é uma democracia, mas essa democracia nunca entra na favela.

Uma coisa que eu destaco sempre é que esses coletivos pensam num ideal para a comunidade. Acho que é isso que nos faz fortes dentro de nossa comunidade. A gente quer sempre um bem comum, não importa quem esteja fazendo, mas que se faça, que as as políticas públicas de ações afirmativas que não chegam na nossa comunidade por parte do poder público, cheguem pelos coletivos.

A gente debate muito a desigualdade e, para muitas pessoas, esse olhar para a desigualdade é uma olhar que a pandemia trouxe, mas a gente percebe que a desigualdade é um problema estrutural.

Foto: Leonardo Sá

Você tem denunciado casos de violência policial nos territórios. Consegue enxergar uma outra política de segurança possível? Como poderia ser?

Eu sempre acredito que existe um modelo possível quando a gente fala sobre violência policial e é perceptível para quem acompanha minhas redes sociais as inúmeras denúncias que eu faço, os coletivos e organizações não governamentais também fazem. Como dói ver as famílias perderem seus entes queridos de forma truculenta, e o pior, pelas mãos do Estado. A violência do Estado se dá com a permissão do governador. Quem está ali para governar pelas nossas vidas está tirando as nossas vidas, quando policiais sobem os morros caçando os mesmos corpos, se impondo como autoridade máxima e esquecendo da democracia.

É notório que precisamos de um outro modelo de segurança pública, que ao menos assegure a vida dos moradores de periferia e não tire a vida deles. E esse sistema prisional está ultrapassado, esse sistema policial está ultrapassado. E quando digo que sou a favor da desmilitarização, não estou falando de acabar com a polícia. Estou dizendo que não quero mais coronéis matando pretos, quero segurança para nós e para a polícia. Uma polícia capacitada, que seja bem remunerada, que não trace o corpo, a pele e o endereço como elementos principais. É isso que a gente tem que dialogar.

Não adianta eu chegar para ele e falar de gênero, raça e sexualidade, e no outro dia o sargento mandar ele para rua e fazer tudo ao contrário. Precisa haver uma fiscalização. E para isso, o governo tem que sentar com as lideranças, com os movimentos sociais e discutir um plano, um programa para esses policiais e para essas comunidades.

Qual a importância da construção de políticas públicas para a juventude? Como analisa a atual situação delas em Vitória e no Espírito Santo?

As Políticas Públicas para a Juventude (PPJ) são algo primordial para construir um caminho alternativo para os jovens. São elas que garantem para essa juventude ter acesso e permanência em diversos espaços. O Plano Municipal de Juventude é um elemento precioso que temos em nossa Capital. Muitos municípios não têm esse plano. Ele precisa urgentemente ser seguido pelas secretarias.

Não existe construir política pública sem pensar nas juventudes, porque nós somos passado, presente e futuro. Não tem essa de dizer que somos só futuro. Será que é interessante para o prefeito ter as políticas públicas de juventude ou ter alguém que toque essas políticas dentro dos municípios? É preciso fiscalização.

O que estamos passando no Brasil, e sobretudo em Vitória, é um desmonte das políticas públicas que foram construídas por nós. Ou alguém aqui conhece outro município que tem política direta para negros como nós temos, como o Núcleo Afro Odomodê? Permanecer com o que temos é um ato de resistência.

Temos que pensar no nosso centro de formação e capacitação, nosso CRJ [Centro de Referência da Juventude], até quando ele vai ficar fechado? A cobrança precisa ser reta, não podemos fazer curva. Não importa qual gestão da prefeitura fez, importa que tenha grana para tocar as atividades. Para mim, quem construiu não foi o prefeito, foi a população, porque nós que fizemos pressão para que existissem. Isso é ganho da população, da juventude negra, da juventude capixaba.

Foto: Facebook

Como mulher negra, periférica, como vê a questão da representatividade nos espaços de poder e decisão? Pensa em ocupar esses espaços?

Na Câmara, nós precisamos ajudar Camila Valadão [Psol] nesse espaço enquanto mulher preta, que está ali tentando fazer aprovar uma comenda em homenagem a um cara grandioso como Lula Rocha. E também apoiar a Karla Coser [PT] enquanto mulher nesse espaço que sofre com a questão do machismo. Não há como construir políticas para mulheres nem para a periferia se não existirem essas mulheres nesses espaços de poder. Representatividade importa sim, e precisamos falar sobre isso já! E não só falar, mas votar nelas. Colocar meu nome para uma futura candidatura seria algo a se pensar e planejar na coletividade por quem acredita no nosso trabalho. Eu apoio qualquer nome que nos represente e se esse nome for o meu, eu estarei aqui para representar nossa comunidade.

Outra questão que queria abordar é sobre militância e saúde mental. Como você tem lidado com isso?

Eu tive um tempo na militância em que realmente adoeci. E precisei fazer muitas escolhas, sobre o que era primordial e o que eu não poderia deixar. Poucas pessoas sabem, mas eu literalmente perdi as esperanças e caí num início de depressão. Eu chorava por tudo. Tive um relacionamento chegando ao fim, estava nesse momento de perda, e de entender que essa perda talvez fosse para coisas boas, mas de ter essa insegurança toda em cima de mim.

Hoje faço tratamento terapêutico para me ajudar nessa superação. Cuido da minha saúde mental fazendo coisas que não estão ligadas à minha militância, mesmo que às vezes eu tenha que militar, porque, afinal, ninguém quer mulher no futebol. Então hoje eu voltei a jogar futebol. O meu pai me impediu de jogar quando era mais nova. Mas um dos encaminhamentos da minha psicóloga foi voltar a fazer o que eu gostava, e o futebol é algo que eu gosto muito.

Antes, se eu tinha uma reunião e o futebol, eu ia na reunião porque achava que era mais importante . Hoje não, hoje o futebol é um elemento do meu dia a dia, da minha saúde. Pergunto então se tem outro momento para a reunião, se precisa ser eu mesma nessa reunião ou se pode ser outra pessoa do coletivo. Porque esse horário é o horário de eu cuidar do meu corpo, da minha saúde mental, horário de eu chutar a bola, mesmo se errar o gol, mas é meu horário.

Mais Lidas