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Entre escombros e arte, o que permanece?

Exposição ‘Não sair até o rojão estourar’ ocupou as ruínas da Ilha da Pólvora, em Vitória, mas não acaba quando termina

Nos últimos dias, as imagens de uma exposição entre ruínas começaram a circular pelas redes capixabas, especialmente das pessoas ligadas à arte. Que exposição é essa? Quer lugar é esse? Muitos se perguntavam. Logo ali, na capital capixaba, está a Ilha da Pólvora, sede do antigo Hospital do Isolamento Oswaldo Monteiro, para onde se enviavam doentes de tuberculose e hanseníase, doença antigamente chamada de lepra.

Mais que uma exposição, Não sair até o rojão estourar foi uma ocupação, segundo Clara Pignaton, idealizadora e diretora artística da atividade. “Se trata mais de uma prática espacial do que uma contemplação, e foram as condições socioespaciais e históricas da Ilha que dispararam a proposta. Pensar na ideia de ruína, mas sobretudo na forma como a natureza reivindica materialmente esse espaço. Pensar as noções de paisagem na relação com a cidade”, diz.

A Ilha da Pólvora está localizada entre Santo Antônio (Vitória) e Porto Canoa (Cariacica). Foto: Vitor Taveira

Refletir sobre a cidade, a paisagem, a memória, a natureza e a materialidade foram algumas questões suscitadas a Clara e que levaram ao convite a dez artistas para trazerem também seus olhares e intervenções para o local tão impactante. Visitas e conversas foram consolidando de forma orgânica a ocupação de diversos pontos da ilha pelas obras e propostas artísticas.

Com a desativação do hospital na década de 1990, a Ilha da Pólvora foi do isolamento ao abandono, do temor ao esquecimento. Em 2007, o artista Marcus Vinícius realizou ali a performance Território Expandido I – Ilha da Pólvora, gravada e publicada em vídeo e exposta em galerias. Cinco anos depois, o artista faleceu precocemente, aos 27 anos. Isso não impediu que sua obra seguisse viva, e voltasse para onde começou. Projetado na parede num dos mais amplos e impactantes cômodos das ruínas do hospital, a imagem de Marcus ressurge nua no vídeo, caminhando pela ilha de escombros rodeada de linda paisagem e fazendo experimentos com pólvora.

A performance de Marcus Vinícius, porém, não foi a única manifestação de arte que permeou a ilha em seu abandono. O pixo, ou graffiti, de forma simples ou mais elaborada, marca presença e transmite mensagens em diversos pontos do que sobrou do hospital, inclusive na impactante e misteriosa frase que dá nome à ocupação/exposição: “Não sair até o rojão estourar”, que já figurava numa das últimas alas do hospital antes que a ilha fosse ocupada por obras de 10 artistas na curta temporada em que esteve instalada, entre 31 de julho e 8 de agosto, contando com recursos da Lei Aldir Blanc.

Performance de Marcus Vinícius feita na Ilha da Pólvora em 2007 foi exibida no local. Foto: Vitor Taveira

Na ilha, a própria natureza resistente mostra seu dom estético, com as árvores e plantas ocupando lugar em meio ao concreto com formas harmônicas ou tensionantes. A beleza que os escombros despertam para olhos atentos também poderia gerar a quem caminhava por lá certa sensação dúbia sobre o que se encontrava pelo caminho: os restos de concreto e natureza ali posicionados, seriam acidente natural? Teriam sido modificados por humanos por questões práticas? Ou propositalmente, por provocações estéticas? Afinal, o que define o que é ou não arte?

A própria obra de Natan Dias, Ensaio de Rasteira, sofreu intervenção das intempéries das galerias arruinadas e sem teto. Os ferros retorcidos expostos ao chão, ressignificando o material tão presente e exposto na construção abandonada, ganharam como base o efeito do espelho d’ água surgido nos momentos em que houve chuva.

A proposta de Rubiane Maia, que gerou a mais impactante obra, com grandes tecidos nos quais se exibem mãos negras, também trazia uma proposta intimista. Na ala que se pode mergulhar ainda mais profundamente numa das essências e sentidos da exposição, que é o caminhar. Um áudio que pode ser acessado por celular por um adesivo colado na parede traz um texto para ser ouvido enquanto se percorre o que sobrou do hospital, com narrativas tocantes. O áudio (disponível aqui) provoca outros contornos emotivos ao ser ouvido andando pelo local.

Desta e outras maneiras, a exposição permanece mesmo com o fim da temporada de visitas, com obras que dialogam com as outras intervenções humanas e naturais que já existiam e que virão a se incorporar pelos que ainda transitam pelo local aparentemente abandonado.

Da ocupação artística recente, permanecem, por exemplo, os lambes de Raquel Garbelotti, numa série intitulada Invasoras, em que são retratadas algumas das plantas presentes na ilha, ocupando seu lugar em meio à construção. As obras se espalham pelo local, desde pontos visíveis na parte interior dos edifícios até outros colocados em locais externos, que só os mais exploradores encontrarão. Novamente, os percursos e caminhares serão decisivos para o encontro do visitante com a arte da Ilha da Pólvora, como sempre foi antes da exposição/ocupação.

Pelos corredores tomados de lodo, uma obra que pode passar desapercebida para quem transita entre os escombros olhando para o chão para evitar acidentes. A partir do lodo acumulado nas paredes, Bruno Zorzal, artista e pesquisador ligado à fotografia e imagem, desenhou rostos anônimos, que devem permanecer por tempo indeterminado no local, até que outras pessoas ou a natureza interfiram na obra.

Bruno Zorzal produziu rostos a partir do desenho no limo acumulado nas paredes do antigo hospital. Foto: Vitor Taveira

Outra marca que não só permanece como modifica a experiência de conhecer e explorar a Ilha da Pólvora é a o obra Alice, de Fredone Fone. Aproveitando os conhecimentos de construção aprendidos com o pai, o que o artista fez foi instalar uma escada num local da antiga ala feminina. Apesar de trazer certa beleza estética, o centro da obra não é escada em si, comprada num site de produtos usados, mas o que ela proporciona.

Com a instalação, Fredone abriu campo para outro local até então inacessível nos tempos de funcionamento do hospital e depois de seu abandono. Inacessível exceto a quem, como ele, não tivesse a destreza da escalada adquirida em sua experiência ainda como grafiteiro.

Subindo os degraus espiralados ali instalados, o acesso ao terraço proporciona uma das melhores vistas do hospital, de 360 graus desde o ponto mais alto da pequena ilha, possibilitando observar sua extensão e entorno que inclui o avistamento de monumentos naturais como Mochuara (Cariacica), Mestre Álvaro (Serra) e Fonte Grande (Vitória), além de bairros como Santo Antônio, na Capital, e Porto Santana, em Cariacica.

Para além da vista, a obra também traz homenagem a Alice Ball, uma jovem mulher negra estadunidense que desenvolveu trabalhos importantes no tratamento da hanseníase. Faleceu jovem e seu trabalho foi “sequestrado” e publicado por um homem branco sem os devidos créditos, apagando sua história, assim como ficaram apagadas tantas histórias relacionadas com esta doença naquela Ilha da Pólvora.

Acesso ao terraço proporcionado pela obra de Fredone Fone possibilita vistas ampliadas do entorno. Foto: Vitor Taveira

O trabalho de Bárbara Bragato, Ensaio de Aproximação,  trata do registro visual das obras e do local em fotografia, com o resultado sendo apresentado online nos canais da exposição como o site e a página no Instagram, continuando a reverberar a experiência do local.

A pesquisa e o processo de realização de Não sair até o rojão estourar incluem também a conversa com moradores do entorno, que ainda guardam memórias e histórias vividas ou ouvidas da época de funcionamento do Hospital, aberto em 1925. Sobre quem ali trabalhava, era tratado ou transportava as pessoas ilhadas. “Essa ilha misteriosa é um campo de fabulação incrível, ouvimos histórias fantasmagóricas de pescadores e muito do imaginário das pessoas sobre as ruínas. Ouvimos que os Estados Unidos enviavam dinheiro para o hospital e que lá havia um viveiro na década de 30”, conta Clara.

Por outro lado, para além dos relatos, ela observa uma falta de informações oficiais sobre a história do hospital. “Encontramos fragmentos na hemeroteca, algumas imagens no Arquivo Público, desengavetamos um arquivo na Polícia Civil com inúmeras fotos de antes de ser desativado, mas muito pouco sobre as pessoas. Montamos um quebra-cabeça para entender um pouco dessa história”.

A exposição/ocupação, além de seu valor estético multiplicado e potencializado pelo entorno, com o qual dialoga de forma inevitável, também marca uma inflexão política. O que fazemos com nossa memória? O que deixamos virar ruína? Quais são as histórias arruinadas pelo tempo e esquecimento?

Para além da arte, Não sair até o rojão estourar realizou serviços importantes como a limpeza do local, a garantia de segurança durante o tempo de visitas, e a possibilidade de acesso de forma organizada e gratuita até o dia 8 de agosto.

Além das obras seguirem ressoando na mente de visitantes, fica latente a pergunta: depois da ocupação temporária, o que será da Ilha da Pólvora? Qual pode ser o futuro deste passado? Várias utopias me vêm à mente. E você, o que consegue imaginar?

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