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Harpia é encontrada morta por arma de fogo na Reserva de Sooretama

Complexo Linhares-Sooretama protege 50% das florestas que a espécie tem como último refúgio 

Brener Fabres/Projeto Harpia-Ufes

Apenas poucos dias depois de ter sido reintroduzida em seu hábitat, a harpia fêmea jovem reabilitada por pesquisadores do Projeto Harpia, servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e outros colaborares, foi encontrada morta dentro da Reserva Biológica de Sooretama, no norte do Estado.

O laudo de necrópsia indica que ela foi morta por arma de fogo e a data estimada é o dia 24 de julho, segundo informou o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e doutor em Biologia Evolutiva Áureo Banhos, que coordena a atuação do Projeto Harpia no Corredor Central da Mata Atlântica (CCMA), região que envolve o Espírito Santo e o sul da Bahia.


A perda é inestimável, acentua o coordenador, pois, quando um animal do porte e nível de ameaça como a harpia morre, toda a natureza ao seu redor se fragiliza. No complexo florestal formado pela Reserva Biológica de Sooretama e a Reserva Natural da Vale, entre Linhares e Sooretama, estima-se que existam no máximo dez casais da espécie, que está Criticamente Em Perigo, o nível mais preocupante de ameaça de extinção, segundo classificação internacional.

Esse remanescente florestal capixaba, explica Aureo Banhos, consiste no maior fragmento de Mata Atlântica de Tabuleiro do país e protege quase metade da área definida como Reserva da Costa do Descobrimento do Brasil, um patrimônio natural mundial da humanidade com 116 mil hectares de áreas protegidas dentro do Corredor Central, formado por seis unidades de conservação na Bahia e as duas reservas capixabas.

“Conhecemos quatro casais de harpias nesse complexo florestal capixaba. Estimamos que possam existir oito ou dez casais no total”, conta o coordenador.

Os cerca de 50 mil hectares de florestas protegidas pela Rebio Sooretama, Reserva Natural da Vale e duas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) poderiam abrigar uma população maior da grande ave, considerada a maior águia do Brasil. Mas isso não acontece, explica, devido ao grande número de ameaças que cercam a região, como caça, rede de eletrificação rural do entorno (onde animais morrem eletrocutados) e a BR-101, que atravessa 25 km da Rebio e sua zona de amortecimento.

Brener Fabres/Projeto Harpia-Ufes

 “A BR-101 trouxe uma ocupação humana muito forte, inclusive caçadores de outras regiões. Há sítios de reprodução, ninhos, muito próximos da rodovia, que também provocam muitos atropelamentos de harpias e outros animais, de grande e pequeno porte”, relata, lembrando que estimativas indicam que mais de um milhão de animais já morreram atropelados nesses 25 km de estrada federal, incluindo onças, antas e outras espécies ameaçadas. Um estudo recente revelou ainda que a BR-101 tem o maior índice de atropelamento de morcegos do mundo.

Ameaça crescente

O doutor em Biologia Evolutiva reforça o pleito que vem sendo defendido por uma ampla frente de cientistas há oito anos, quando teve início o licenciamento ambiental para a duplicação dos mais de 400 km da BR-101 no Espírito Santo: a retirada dos 25 km que atravessam a Rebio e sua zona de amortecimento. A rodovia, sublinha, foi construída nesse local ao arrepio da legislação da época e o contrato de duplicação, firmado entre a concessionária ECO 101 e a Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT), é uma oportunidade de ouro para consertar esse erro, que configura uma ameaça crescente às florestas da região, que cresce proporcionalmente ao aumento gradativo do fluxo de veículos sobre a estrada.
O cientista lamenta que, apesar de todos os alertas feitos pelo ICMBio e pelos pesquisadores, e da própria recomendação feita no Termo de Referência do licenciamento – disponibilizado em 2013 pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável pelo licenciamento – a concessionária continua se recusando a apresentar estudos robustos sobre alternativa locacional dos 25 km, ou seja, não apresentou um projeto para desviar a rodovia de dentro da área florestal. 
A recomendação expressa dos cientistas é um desvio a oeste da Reserva, atravessando uma área já degradada, o que ainda significaria um modal de desenvolvimento socioeconômica que a região demanda há tempos.
Cobrada pela sociedade e por deputados federais capixaba para cumprir o cronograma de obras, que está excessivamente atrasado, incluindo no trecho sul da rodovia, onde não há conflitos ambientais, a ECO 101 continua a culpar a não liberação da licença ambiental no trecho norte para todos os atrasos do cronograma e, junto com a ANTT, afirma que a saída para desfazer o nó do licenciamento no Ibama é não duplicar os 25 km que atravessam a Rebio.
A medida, no entanto, não resolve a ilegalidade ambiental histórica, tampouco garante proteção à biodiversidade, pois provocará um verdadeiro funil da estrada para dentro da área natural, mantendo a vulnerabilidade da Reserva à entrada de caçadores, a atropelamentos de animais e aos efeitos maléficos das diversas fontes de poluição emanadas do tráfego crescente de veículos.
Reprodução Parques do Brasil

“A concessionária contabiliza apenas o gasto com a obra, com asfalto. Mas quem vai pagar o ônus ambiental e climático?”, questionou o professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Luiz Fernando Magnago, doutor em Ecologia e pesquisador dedicado há mais de uma década à Rebio e demais remanescentes florestais preservados em seu entorno, no norte do Estado.

Aquecimento global e pandemias

A não duplicação dos 25 km que atravessam a Rebio e sua zona de amortecimento, explica, traz apenas o benefício de evitar o desmatamento de uma faixa de floresta em cada lado da rodovia, bem como a criação de uma nova área sob o chamado “efeito de borda”. O ecólogo estima que 50,9 mil toneladas de carbono serão mantidas na floresta com a não duplicação.
Os impactos da presença da rodovia, no entanto, não se limitam às áreas de borda, e minam pouco a pouco a resiliência da floresta, com a entrada de espécies invasoras ao ambiente e de caçadores, além de outras ameaças. É muito visível, conta Luiz Fernando, a perda de espécies animais de maior porte.

A redução das populações de antas e queixadas, por exemplo, que são grandes dispersores de sementes grandes, reduz a capacidade de regeneração das árvores grandes e, consequentemente, consiste em outro vetor de perda da capacidade de estocar carbono dentro da floresta, que se torna cada vez menos biodiversidade, menos potente e mais vulnerável.

Num momento em que o mundo inteiro se mobiliza para frear as mudanças climáticas e reconhece a necessidade de preservar as florestas para evitar novas pandemias como a de Covid-19, em pleno curso mortal, manter a vulnerabilidade de uma floresta como a Rebio Sooretama, com base numa conta rasa de economia de asfalto e outros cálculos de engenharia, é simplesmente inadmissível.

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