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Reportagem especialAs madeiras amarelas do Pará

Texto: Henrique Alves

Fotos: Gustavo Louzada/Agência Porã
 

Marco Ortiz passou uma boa meia hora deitado num sofá de dois lugares, a barriga pra cima, narrando as origens do Sol da Terra e revendo este último mês. Sexta (19) completou-se um mês do deslizamento que engoliu o restaurante naturalista Sol da Terra. 

 
Sentou-se para contar o dinheiro do gás de cozinha – e aí irrompeu o caso de um pedaço de pau. Simbólico caso. Quem explica o fato de uma mera, simples e prosaica estaca de madeira envergada se encaixar perfeitamente na arquitetura do Sol da Terra? 
 
Ele diz isso entre risos, entre surpreendido e deslumbrado, como se o fato fosse antes um milagre. As mãos desenhavam no ar a madeira se ajustando numa reentrância qualquer que, embora agora fosse só memória, ali parecia irrefutavelmente palpável. 
 
Não é obra do acaso que o microcosmo de sossego que se abria após a estreita e breve escada que se comunica à Barão de Monjardim tenha a cara (& o gesto & a fala) de quem o concebeu.  
 
O Sol da Terra tem 33 anos e começou em Vila Velha, na Rua Henrique Moscoso, atrás do Vasco Coutinho (o atual Centro Estadual de Ensino Técnico Vasco Coutinho), no mesmo terreno onde hoje se vê Shopping Tropical.
 
Barriga pra cima, lembrando um paciente no divã, Marco traz o nome de Antônio Braga, que era o dono do terreno. Quando ele morreu, o neto assumiu os bens e pediu o imóvel. O centro comercial, hoje um retrato desbotado da bonança, ergueu-se em seguida. 
 
No início, eram apenas três ou quatro clientes por dia. Marco começou a montá-lo em 80 para abri-lo no ano seguinte, inaugurando uma filosofia que se manteve imexível por todos esses anos: oferecer uma alternativa não apenas gastronômica, mas cultural aos clientes. A hora do almoço deveria ultrapassar a mera e burocrática reposição de energia.
 
Pelo que descreve, o ambiente seguiu a mesma estética roots de decoração que se via na Barão de Monjardim. Com o irmão Eduardo Brother, saía pela rua catando, colhendo, material para compor o restaurante: o palco era de bambu; as mesas, de taipá; o piso, de tijolo reutilizado; placas de amianto nas paredes e no telhado; e abençoando a tudo e a todos, uma mangueira no quintal (assim como na Barão havia duas centenárias mangueiras).
 
Falamos do palco: havia um para os artistas, músicos ou grupos teatrais. O restaurante era também um cineclube. Marco fala do evento Não a Chernobyl e de outro em que foram projetados filmes da ONU sobre desarmamento. 
 
Foram cerca de dois anos em solo canela-verde. Após deixar a Henrique Moscoso, o Sol da Terra funcionou por cinco meses, com o mesmo espírito e propósito, no Dispensário São Judas Tadeu, na Prainha, ao lado da Igreja do Rosário. Marco compôs a chapa que vencera as eleições para a Entidade Dispensário São Judas Tadeu, ligada à Igreja Católica.
 
Mas o mesmo espírito e propósito, ou seja, um vibrante calendário cultural, incomodou setores conservadores. Segundo um frade, o local convertera-se num antro de sexo, drogas e rock n’ roll.
 
As sementes do Sol da Terra foram lançadas em 1973, ano em que Marco Ortiz ingressou na Faculdade de Medicina da Emescam (Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória). 
 

Na república que dividia com amigos de Taubaté (SP), sua cidade natal, e do Rio de Janeiro, alguém um dia chegou com o livro que lhe abriria as portas da percepção: Macrobiótica Zen, do japonês George Ohsawa. Fez a seguir a dieta dos 10 dias de arroz. No mesmo ano, parou com a carne vermelha. Em 78, aboliu o peixe.

 
A escola em que conjugou teoria e prática chama-se Enca – ou Encontro Nacional de Comunidades Alternativas, até hoje realizados anualmente Brasil afora. Ali Marco assimilou um valioso repertório de conhecimento, práticas, hábitos e filosofias alternativas. 
 
Mas só no Congresso Sul-Americano de Naturismo de 1981, em Brasília, sentiu uma energia diferente, um tipo de sensação que apenas se sente, não se descreve, e que lhe apontou o caminho.
 
“Queria oferecer uma amostragem prática para as pessoas não ficarem doentes”, diz. A máxima de Hipócrates é um ensinamento e uma bússola que Marco Ortiz observa fielmente: “Fazei de vosso alimento o vosso remédio”.
 
A janela da sala do apartamento ao nono andar do edifício Jardim, em frente aos restos mortais do Sol da Terra, oferece um recorte do verde da Gruta da Onça. Há um mês Marco e os quatro filhos (são sete ao todo) olham de cima a mata que passaram 28 anos olhando de baixo. Os cinco dividem um quarto; na hora de dormir, três se ajeitam no assoalho e dois na cama de casal. 
 

Os últimos 30 dias têm sido difíceis e não exatamente em função do restaurante. A família Ortiz está habituada a dormir com janelas abertas, sentindo a carícia doce da brisa da madrugada, e a despertar ao canto dos pássaros. Isso, sim, para Marco, é difícil, ou, como ele prefere dizer, “cruel”, adjetivo a que recorre com frequência para definir uma condição hostil. 

 
O Sol da Terra é página virada. Quando Marco se põe no parapeito da janela, não se ouve um muxoxo ou lamento. Melhor: ouve-se, sim. Vamos explicar. Na terça-feira (16), começou o trabalho de remoção da colossal mistura de terra, troncos e escombros acumulada na área do restaurante. Na quinta-feira (18), pedregulhos gigantescos emergiram; vistos de cima, dão a noção exata da hecatombe. 
 
Na manhã de quinta, ele se mordia pelas madeiras amarelas do Pará que divisava entre os destroços. Delas eram feitas os bancos e mesas do restaurante. “São de 30 anos atrás; não existem mais”. A preocupação é reaproveitar qualquer resto, por mais avariado que pareça. Assim ele ergueu o Sol da Terra em Vila Velha; assim o fez em Vitória.
 
A versão canela-verde não vingou e, em 84, Marco se mudou para Vitorinha. Foi morar na casinha de fachada amarelo-clara ao lado do restaurante. Recebeu-o um amigo que conhecera em 73, durante um curso de teatro na Fundação Cultural do Espírito Santo.
 
Dois anos depois (re)abriu o Sol da Terra. O novo restaurante cresceu da mesma forma, uma tarefa de artesão, tecida pacientemente, conta ele, a voz pausada, ante o recorte da Gruta. É para lá que, descalço, enfiado numa calça azul-cobalto e uma regata amarelo-clara, Marco olha enquanto escoa as lembranças. 
 
Com a ajuda de outro irmão, Gustavo Ortiz, saía pelas ruas à cata de material. Exemplo: o piso. O capítulo final registra o piso de cerâmica. Mas no início era de pedras assentadas, retiradas da Gruta; depois veio o piso de terra. Antes do telhado, uma lona retrátil cobria o ambiente.
 
O vagaroso processo que pôs cada pedra, tijolo ou pedaço de pau, torto ou não, num lugar perfeito, como se tivessem nascido ali, é o que agregou valor ao Sol da Terra. Se tivesse grana – o próprio médico naturalista conclui, estirado no sofá, relendo 33 anos de labuta – se tivesse grana o restaurante não sairia daquele jeito. 
 
Se para as coisas ruins Marco usa “cruel”, para as boas ele solta um “demais”. E isso, o parto difícil, suarento e demorado do Sol da Terra, no entanto redentor e apoteótico ao final, isso para ele é maravilhosamente “demais”. 
 

Marco assimila o “demais” e o “cruel” como uma coisa só,  visão que remonta ao princípio taoista do “agir pelo não-agir” segundo o qual o sábio “aceita tudo que lhe acontece” e “produz tudo e não fica com nada”. O bem de concluir uma obra irmana-se ao mal de vê-la arruinada. 
 
Quem quiser ver aí uma fábula moral cor-de-rosa sobre humildade, ok, vá em frente. Mas foi a vida desapegada que aceitou levar, longe do existir-para-o-consumo contemporâneo, que tanto semeou o Sol da Terra como lhe ensinou a virar as páginas. 
 
E por ela testemunhamos uma tocante mobilização de amor ao próximo. O apartamento em que está, por exemplo. Delicadeza da vizinha, um dos corações do tamanho do mundo que se abriram à família Ortiz.
 

O capítulo canela-verde do Sol da Terra registra um poodle na qualidade de um de seus protagonistas. A sina reservara-lhe um destino lúgubre; Marco salvou-lhe. Nos anos 70, a Prefeitura de Vitória tinha por hábito ceder alguns caninos recolhidos nas ruas aos esforços pedagógicos da Emescam. Em 78, Marco fazia a disciplina “Técnicas Cirúrgicas”. Liguem os pontos. 

 
Beleza. O jovem estudante de medicina e futuro empreendedor gastronômico-cultural simpatizou com o bicho e a vida fez-se então bem mais ensolarada: o poodle ganhou um lar, ganhou comida, ganhou dignidade. Ganhou também um nome: Sol. Morreu no alvorescer do restaurante, que não tinha nem nome e em cujo ventre foi enterrado. Sol da Terra.

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