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Mapeamento identifica 11 mil integrantes de povos tradicionais em Cariacica

Estudo aponta para um contexto de violência, marginalização e falta de acesso a políticas públicas

Reprodução

O município de Cariacica conta com, pelo menos, 10.950 pessoas pertencentes a alguma comunidade tradicional. Os dados, que consideram ciganos, povos de matrizes africanas, pescadores e marisqueiros, são resultado de um mapeamento realizado por mais de um ano na cidade. O estudo, pioneiro no Espírito Santo, descortina a ausência de políticas públicas nas comunidades e pode nortear ações governamentais que amenizem o contexto de marginalização e apagamento dessas culturas em território capixaba.

O “Mapeamento dos Povos e Comunidades Tradicionais do Município de Cariacica”, realizado por meio da Gerência de Igualdade Racial da prefeitura, foi um trabalho colaborativo que envolveu pesquisadores do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Espírito Santo (Neab-Ufes), representantes de movimentos sociais e lideranças do município.

“O interesse de mapear essas comunidades nasceu a partir, primeiramente, do desejo dos próprios membros tradicionais do município em sair do ostracismo mediante a visibilização de suas tradições e o reconhecimento de sua cultura ancestral como um dos componentes no processo de constituição da sociedade cariaciquense atual”, explica o pesquisador e mestre em Ciências Políticas Iljorvanio Silva Ribeiro, um dos responsáveis pela parte técnica da pesquisa.

O estudo foi realizado de 23 de janeiro de 2020 a 26 de março de 2021. Dentre a população estimada de 10,95 mil pessoas em comunidades tradicionais, 9,7 mil são de povos de matrizes africanas, 1,18 mil de pescadores e marisqueiros, enquanto 70 pertencem a comunidades de ciganos.

APEES

O mapeamento foi dividido em duas partes. Primeiro, os pesquisadores se propuseram a localizar os povos tradicionais dentro do município, identificando como eles estão distribuídos no território e conhecendo a trajetória de vida das lideranças, suas narrativas e o seu quantitativo.

Em seguida, foi feito um levantamento socioeconômico dessas comunidades, analisando aspectos como Moradia; Trabalho, Emprego e Renda; e Política Assistencial Pública e Saúde. Segundo Iljorvanio, os resultados encontrados, a partir das entrevistas feitas com 290 pessoas, impactam diretamente na condição de sobrevivência desses povos e de sua reprodução cultural. É o caso dos povos ciganos identificados no município.

“Foram identificadas condições de abandono e de invisibilidade com que essas famílias sobrevivem, há décadas, em relação ao poder público como, por exemplo, inacessibilidades aos direitos básicos como o de saúde, alimentação e de cidadania. A escassez de alimentos nas barracas é uma realidade cotidiana para muitos deles e se acentuou durante o período da pandemia do coronavírus”, aponta o pesquisador

Já entre os povos de matriz africana, o que se identifica é o aumento da violência sofrida tanto dentro quanto fora das comunidades e territórios. As violações relatadas também incluem situações de discriminação e intolerância religiosa.

“Essa mesma violência pode ser traduzida em inúmeros casos narrados pelos entrevistados no que tange aos muitos ‘não acessos’ sofridos cotidianamente por esses povos: não acesso às políticas de incentivo cultural, não acesso aos recursos naturais do território que ocupa e do qual depende para sua reprodução cultural (como cachoeiras, rios, praças e matas), não acesso ao direito de registrar os seus centros ou terreiros, e outros tantos ‘não acessos”, declara.

A falta de acesso também se estende às demais comunidades mapeadas. Os relatos dos 89 pescadores e marisqueiros do município que participaram das entrevistas revelaram um contexto de marginalização dessas comunidades, privadas de serviços de infraestrutura básicos como rede elétrica residencial, água encanada, pavimentação de ruas, rede coletora de esgoto, iluminação pública de qualidade e serviço de coleta de lixo eficaz.

Iljorvanio enfatiza que o descaso com a natureza também tem um impacto direto na vida desses grupos que dependem dela para sobreviver. “A transformação dos rios em canais receptores de esgoto doméstico, a poluição das marés e as frequentes invasões imobiliárias nas áreas de manguezais constituem-se como ameaças diárias ao exercício cultural dessas comunidades”, declara.

Além desses três grupos registrados e entrevistados, o mapeamento identificou uma comunidade com 150 famílias de pomeranos, concentrados próximos aos bairros Itapemirim e Santa Cecília, e duas famílias remanescentes de quilombos, na região de Roda D’água, área rural de Cariacica. “Devido à pandemia, a idade avançada das lideranças e a condição de saúde fragilizada com que se encontravam, optou-se por pesquisá-las em momento mais oportuno pós- pandemia”, explica o pesquisador.

A construção de um município e de um estado

Mais do que mapear essas pessoas, o estudo identifica a trajetória desses povos nos territórios em que vivem. Para Iljorvanio, essa também é uma chance de reconhecer o papel das comunidades tradicionais na construção da cultura capixaba.

“As atividades tradicionais são transmitidas e ensinadas de geração a geração através da tradição oral, obedecendo aos costumes que orientam cada grupo. As transformações ocorridas ao longo dos dois últimos séculos não impediram que os grupos pesquisados nesse mapeamento preservassem ainda hoje, na atualidade, características culturais e modos de vida compatíveis aos originários de uma tradição vivenciada e compartilhada antes mesmo da diáspora ocorrida no passado”, enfatiza.

Ijorvanio explica que o mapeamento começou a ser pensado ainda em 2015, em reuniões do Fórum de Matrizes Africanas de Cariacica (Fomac), mas só ganharam força em 2017, quando o ex-presidente do fórum, Sandro Cabral, assumiu a Gerência de Promoção da Igualdade Racial do município de Cariacica.

Segundo o pesquisador, outras tentativas de fazer o estudo em municípios da Grande Vitória, como na Serra, não foram desenvolvidas por falta de interesse dos gestores públicos. A partir de agora, Iljorvanio espera que o mapeamento sirva de base para a construção de políticas públicas que promovam não só a melhoria da qualidade de vida dessas comunidades, como a valorização das culturas tradicionais existentes, alcançando o município de Cariacica e todo o Espírito Santo.

“[O estudo] vem ao encontro das demandas desses povos que sofrem cotidianamente com o preconceito social, com a invisibilização de sua cultura e com as dificuldades de acesso aos benefícios evocados pelas políticas étnicas. Trata-se de grupos liderados por homens e mulheres, cujas importantes obras sociais desenvolvidas localmente tornam-se referência nos locais inatingíveis pelo Estado”, declara.

A previsão é que o mapeamento seja divulgado pela Prefeitura de Cariacica no dia 14 de outubro. No dia 17 de setembro, o estudo foi lançado no seminário do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Ufes.

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