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A vida é memória

É necessário, acima de tudo, compreender o sentido da ideologia predominante no âmbito cultural

Falando em palavras humanas, Bach exprimiu-se de maneira menos solene. Afinal, as obras definitivas de nossa civilização, que se espera deixar a outros séculos, foram criadas por indivíduos excepcionais, como ele, Dante, Goethe, Michelangelo, Beethoven, Chico Buarque de Holanda, Tom Jobim, Maurício de Oliveira, gênios conscientes da sua função no universo espiritual da civilização. No seu pedido de demissão, dirigido ao Conselho Municipal de Munchausen, Bach lamenta a falta de recursos materiais que lhe teria impedido conseguir “o verdadeiro fim” de sua vida: regularizar os serviços musicais na igreja. Quem conta isso é Otto Maria Carpeaux.

A propósito, não é segredo para ninguém, que o país visivelmente passa por momentos de completa repulsa aos movimentos culturais, uma vez que o Governo Federal é inimigo da cultura. Possui dogmas que, de uma maneira ou de outra, “não permitem regularizar os serviços musicais”, não só da igreja, se é que assim posso dizer, mas dos movimentos culturais na sua essência. Por isso, no plano da grande História, é necessário, acima de tudo, que compreendamos o verdadeiro sentido da ideologia predominante no âmbito cultural.

Em contraposição, vejo, com muita satisfação, que o nosso Estado se movimenta em sentido contrário. O governador Renato Casagrande tem sensibilidade para entender isso. Vem do sul do Estado, região rica em cultura e história.

O jornalista, escritor e pesquisador musical José Roberto dos Santos Neves lançou o livro “Os Sons da Memória – uma Leitura Crítica de 40 Discos” que marcaram época na Música do Espírito Santo, no qual retrata álbuns marcantes da história da música feita aqui, contando também a trajetória dos artistas envolvidos nestas obras. São músicos famosos. Por exemplo, Maurício de Oliveira, a quem o Brasil reverenciou. Sempre foi orgulho dos capixabas. Rogério Medeiros, comandando a imprensa, dizia – ele e Cláudio Bueno Rocha – que Maurício era um dos mais importantes músicos do nosso país. O que sabe sobre isso as novas gerações? Maurício, à época, sofreu restrições ideológicas por ser de esquerda.

Outro dia, a emérita professora e uma das mais brilhantes inteligências de nosso Estado, Ester Abreu Vieira de Oliveira, presidenta da Academia Espírito-Santense de Letras, por ocasião dos 100 anos da AEL, foi recepcionada no Palácio Anchieta, acompanhada de acadêmicos e acadêmicas, e mostrou ao governador Casagrande e seu secretário de Cultura, Fabricio Noronha, que a Academia continua em sua luta para não chegarmos a presenciar hostilidade à memória que preservam manifestações culturais, que se podem encontrar em lendas, contos e na poesia. Ressaltando “que utilizando frestas e ranhuras, resistem à sanha de alguns”.

Palavras pertencem umas às outras, ensinou a sábia Virginia Woolf. Encontro-me com o governador Renato Casagrande. Confidenciou ter ficado impressionado com o discurso da historiadora, principalmente quando disse que a memória “é responsável por nossas convicções e por nossos sentimentos e por restabelecer o passado”, sob a égide dos ensinamentos do dramaturgo espanhol, Fernando Arrabal, em sua afirmação de que “a vida é memória e o homem, o acaso”.

Essas manifestações referidas vêm ao encontro da promessa do prefeito de Cachoeiro de transformar o antigo colégio Bernardino Monteiro, hoje Palácio da Cidade, numa grande Casa de Cultura. Com a responsabilidade de, como disse a professora Ester, recuperar a memória ou os aspectos dela, na terra de Newton e Rubem Braga e de tantos outros intelectuais que, antes de tudo, colocaram a cultura a serviço de seu povo.

Aliás, o ilustre magistrado aposentado, escritor, intelectual e acadêmico João Baptista Herkenhoff – um dos mais brilhantes juristas da história do Estado – deve ter sentido na alma em não ter o Poder Público preservado a Escola de Comércio, de propriedade de sua família, onde várias e intensas gerações colheram ensinamentos. Hoje abrigaria, induvidosamente, uma Casa da Memória.

Vejo no prefeito Victor Coelho essa preocupação. Outro dia mesmo, em minha presença, contatou o secretário Fabricio – a quem não conheço pessoalmente – reivindicando a instalação de um busto do prof. Aylton Bermudes, no pátio do Liceu, em razão dos 40 anos de cultura que o mestre disseminou nas salas do famoso colégio. Reivindicação imediatamente acolhida. Aliás, tudo sob os eflúvios do poeta Newton Braga, que pretendeu que seu povo vivesse ao som de sua poesia: “…esta sensibilidade que é uma antena delicadíssima captando pedaços de todas as dores do mundo, e que me fará morrer de dores que não são minhas”.

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