A Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida recolhe assinaturas de entidades, grupos e coletivos ligados à agricultura, saúde e meio ambiente, em apoio à sua Nota Técnica contra o Decreto nº 10.833, publicado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no último dia oito de outubro.
A normativa presidencial, afirma a campanha, é capaz de provocar “graves impactos para a saúde humana, o meio ambiente, os trabalhadores, as comunidades e a agricultura brasileira”, ao alterar, para muito pior, a regulamentação da Lei de Agrotóxicos até então vigente, formada pela Lei de Agrotóxicos nº 7.802/1989, e o Decreto 4.074/2002, que a regulamenta. “Ambos conquistados após amplos debates com a sociedade brasileira”.
“Nosso mercado, que já é o paraíso dos agrotóxicos, vai ser ‘o paraíso dos agrotóxicos mais tóxicos, ineficazes e obsoletos ainda’. Vai piorar o que já é ruim”, exclama o técnico e consultor agrícola agroecologista no Espírito Santo Moysés Galvão Veiga, citando um trecho da Nota Técnica. “Coloca a grana na frente da saúde”, ironiza o especialista, que assinou o documento por meio de sua empresa de consultoria.
Entre os graves retrocessos, estão “jogar a pouca informação sobre agrotóxicos que temos hoje para debaixo do tapete” e “não diferenciar produtos que têm grave potencial de induzir câncer, por exemplo, jogando tudo num mesmo balaio, uma salada venenosa para confundir, permitindo o registro mais fácil [dos agrotóxicos]”.
No Espírito Santo, comenta, o maior consumidor de agrotóxicos é a cafeicultura, concentrando mais de 50% dos venenos comercializados em território capixaba, seguido da silvicultura, com quase um quarto do total. “Em primeiro lugar é a cafeicultura, disparado. Entre 53 e 58%. Silvicultura, em torno de 18%. Isso, dados de 2015, mas que devem ter aumentado até agora [segundo o Atlas da Mata Atlântica do Espírito Santo, a cafeicultura tem aumentado sua área de cobertura e o monocultivo de eucalipto é o uso do solo que mais cresce no Estado]. Depois vêm as outras monoculturas, com exceção das pastagens, que usam mais adubação. O controle de pragas em pastagens é baixíssimo no Espírito Santo”, expõe.
Uso amplo no urbano e no rural
Na Nota Técnica de repúdio, a campanha informa que o decreto de Bolsonaro altera o ordenamento jurídico que estabelece as normas para o uso, a comercialização, a fabricação de agrotóxicos, seus componentes e afins.
A atual legislação, sublinha, define que o termo “agrotóxicos” refere-se a produtos de uso agrícola e não agrícola, como os usados nos jardins das residências, em ambientes domésticos, urbanos, hídricos e industriais e para controle de plantas ao longo de estradas, ferrovias e redes de transmissão, tendo diferentes aplicações como controle de insetos, fungos e plantas indesejáveis.
“Esse amplo uso permite que esses produtos tenham mais chances de causar danos aos diferentes biomas brasileiros e a uma enorme proporção da população brasileira, exposta a essas substâncias tóxicas dispersas na água, solo e alimentos, como vegetais, carne, leite e derivados”, alertam os signatários da nota.
A legislação atual – lei de 1989 e decreto de 2002 – permitiu o avanço econômico da indústria de agrotóxicos “com algum controle da liberação de produtos biocidas”, garantindo, por outro lado, “que a agricultura orgânica e os sistemas agroecológicos pudessem se desenvolver como modelos alternativos à dependência química na produção agrícola no Brasil”.
Existe, no entanto, há quase duas décadas, uma movimentação para a alteração dessa base legal, visando diminuir o controle do registro e uso de agrotóxicos, em especial daqueles que vêm tendo restrições em outros mercados por serem muito tóxicos.
Pacote de Veneno
O Projeto de Lei nº 6.299/2002, conhecido como “Pacote do Veneno”, é a principal arma da bancada ruralista no Congresso Nacional. Ele visa alterar a Lei de Agrotóxicos em quatro quesitos importantes: flexibiliza a proibição de produtos associados a doenças incapacitantes, irreversíveis e/ou letais; retira o poder de atuação das áreas de saúde e meio ambiente para gestão de aprovação de novos agrotóxicos; compromete o acesso a informações importantes sobre o registro e os produtos usados no país; e deixa aberta a fabricação de produtos sem registro no Brasil.
Por conta das graves consequências apresentadas em tais propostas, instituições de ensino e pesquisa, como Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Nacional de Câncer (INCA) e instituições governamentais como Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Instituto Nacional de Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Trabalho (MPT), Defensoria Pública da União (DPU), bem como a Organização das Nações Unidas (ONU) e diversas organizações acadêmicas e da sociedade civil, se manifestaram contra a aprovação do projeto, que aguarda votação em Plenária na Câmara de Deputados. O livro
Dossiê Contra o Pacote do Veneno e Em Defesa da Vida, lançado em julho passado, contém os posicionamentos e as respectivas análises técnico-científicas desses documentos e das mudanças previstas.
Pois são exatamente os pontos mais críticos do “Pacote de Veneno” que constam no decreto de Bolsonaro. “Agora, o uso de agrotóxicos torna-se ainda mais ameaçador para a saúde e o meio ambiente. Além disso, o decreto coloca a agricultura brasileira mais longe de alcançar as exigências de importantes mercados consumidores preocupados com as crises hídrica, energética e climática e com a proteção da saúde e do meio ambiente”, ressalta a Nota.
Ilegal e inconstitucional
A antecipação dos retrocessos pleiteados no PL via decreto presidencial “é inconstitucional e ilegal em forma e conteúdo”, afirmam as instituições signatárias do repúdio, citando que o ato ultrapassa as competências do Poder Executivo (Capítulo II da Constituição Federal), imiscuindo-se nas do Legislativo. Afronta, ainda, os incisos V e VI do artigo 170, que versam sobre a defesa do consumidor e do meio ambiente, os artigos 196 (direito à saúde) e 225 (direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) da Constituição Federal.
Em resumo, a campanha elencou 16 pontos que resultam “na redução na capacidade do Estado em proteger a saúde humana e os ecossistemas”, agrupados em cinco tópicos: prejudica a atuação dos órgãos essenciais para a proteção da saúde e do meio ambiente, sobrepondo a esses direitos, interesses políticos e econômicos; reduz o acesso à informação para a população em geral, mas também para os órgãos municipais e estaduais, que terão ainda mais dificuldades de exercerem suas funções; não diferencia os produtos com maior potencial de induzir doenças como o câncer daqueles que causam efeitos menos graves, permitindo que esses produtos obtenham registro com mais facilidade; torna o mercado brasileiro o paraíso dos agrotóxicos mais tóxicos, ineficazes e obsoletos – cenário que impactará sobremaneira a população, principalmente a agricultura brasileira, por não ser um mercado de interesse para que fabricantes ofereçam produtos com maior tecnologia de eficácia e segurança; e, finalmente, permite que países com maior regramento frente ao uso de agrotóxicos e com legislações mais protetoras restrinjam a importação de produtos brasileiros.
Equilíbrio entre os poderes
“É imprescindível que, ante tais arbitrariedades e afrontas, se opere o equilíbrio entre os Poderes. O Congresso Nacional é competente para sustar os atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa e o Supremo Tribunal Federal (STF) deve realizar o controle concentrado de constitucionalidade de atos normativos federais”, convoca a campanha, com base na Constituição Federal, respectivamente, o inciso V do art. 49 (Congresso Nacional) e o inciso I do art. 102 (STF).
“Devemos lembrar que a assinatura desse decreto não é uma ação isolada que promove o retrocesso na área da saúde e meio ambiente nos últimos anos. Temos testemunhado recordes de queimadas, desmatamento, liberação de agrotóxicos e perda de biodiversidade, desmonte dos órgãos ambientais, de fiscalização, saúde, entre outros”, contextualiza.
Insegurança alimentar grave
A Nota lembra ainda que quando o decreto foi publicado, no início de outubro, mais da metade dos lares brasileiros, ou 116,8 milhões de pessoas, se encontravam sujeitos a algum grau de insegurança alimentar e 19 milhões de pessoas sofriam o desespero de não ter o que comer, o que equivale “a cerca de 10% da nossa população em situação de insegurança alimentar grave”.
Às vésperas da 15ª Convenção Sobre a Diversidade Biológica (CDB) e da Conferência sobre Mudanças Climáticas (COP-26), “o governo brasileiro mais uma vez reafirma ao mundo a falta de compromisso com a questão ambiental, com a redução dos gases de efeito estufa e da saúde e bem-estar de sua população”, lamentam os signatários.