Músico, professor e multi-instrumentista, ele apresenta no Mucane o disco Grão, com composições autorais
Oriundo do subúrbio do Rio de Janeiro, Leo de Paula cresceu em meio ao ambiente das rodas de samba, pagodes, batucadas, baterias de escolas de samba, partido alto e outros sons. “Tendo isso como mola precursora, não tem como não desenvolver uma musicalidade sem ter uma relação séria com a percussão”. E a relação entre Leo e a percussão ficou ainda mais séria quando ainda jovem se mudou para o Espírito Santo e aos 15 anos entrou para a Orquestra Pop Jazz do Ifes, comandada até hoje pelo maestro Célio Paula.
O ingresso posterior na Faculdade de Música do Espírito Santo (Fames) fez com que o jovem carioca se firmasse de vez em terras capixabas, onde nas últimas décadas tem desenvolvido um reconhecido trabalho como percussionista e professor. O talento autoral como compositor agora ganhou um registro mais acessível com o lançamento de Grão – Território Percussivo, disco será apresentado ao vivo e gratuitamente na próxima terça-feira (23), às 16 horas no Museu Capixaba do Negro (Mucane), no Centro de Vitória, com participação do Grupo de Percussão do Projeto Vale Música Serra e do Projeto Badu de Dança Afro-Brasileira
A obra já está disponível gratuitamente nas plataformas de streaming e também à venda no formato CD no site da Fina Produtora.
Grão – Território Percussivo possui 12 faixas, que incluem trilhas sonoras feitas por Leo de Paula para espetáculos de teatro e dança criados no Estado e também por uma série de composições elaboradas durante o período de pandemia. O passeio instrumental é amplo: no disco escutam-se mais de 20 instrumentos, com pandeiro, tambor de congo, chocalhos, caxixi, berimbau, marimba, timbal, cuíca, handpan e outros. “”As referências composicionais vão desde o potencial de protagonismo inerente a tais instrumentos (muitas vezes relegados ao exótico e folclórico), passando por alusões a arquétipos sagrados afro-brasileiros, pelo misterioso fascínio provocado pela natureza e pela experiência marcante da paternidade”, relata.
Além de lecionar cursos, oficinas e disciplinas no Mucane, Sesc Glória, Fames e outros, Leo Já participou da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses), da Camerata Brasil/Vale Música e tocou em diversos países como Holanda, Sérvia, Inglaterra e Estados Unidos, além de palcos nacionais importantes como do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e Sala São Paulo.
Mas o disco autoral, com canções próprias com exceção de Grão que marca o título do disco, de autoria do amigo e parceiro Leonardo Gorosito, a quem Leo de Paula a dedica, por ser uma obra que lhe abriu portas quando a tocou.
“Eu não comecei a compor pensando num álbum”, conta Leo de Paula sobre o processo que levou ao disco. Ele avalia que os convites para elaborar trilhas sonoras para espetáculos, sobretudo sobre temáticas afrobrasileiras, abriram um caminho para exercer sua criatividade musical para compor. “Deu um fôlego, passei a ter mais confiança. O ambiente acadêmico às vezes inibe, acaba tolhendo o processo criativo. Por isso incluí trilhas que percebi que ganharam vida para além das apresentações dos espetáculos, daí vislumbrei um caminho para o álbum”, explica.
Algumas delas foram remixadas, ressignificadas de alguma maneira para entrar no álbum, como Xirê, Cortejo e Ventania. Outras permaneceram mais fiéis às composições originais. Seis das canções foram escritas em 2019 para a trilha sonora do espetáculo “Macurá-Dilê”, posteriormente recoreografadas e incorporadas a outros espetáculos.
Nesse caminho de produção, um segundo grupo de canções, elaboradas em situação diferente, completa o disco. Em meio à pandemia de Covid-19 e a necessidade de isolamento social, Leo viveu a experiência de ser pai, questões que repercutiram em novas composições autorais. “Durante a pandemia com minha esposa grávida foi tudo muito intenso, um momento aflito”. O músico dedica ao filho Andrey, hoje com 1 ano e trës meses, as três canções da parte final do disco: Jdu tebyá, De lá e de cá e Abrandamento. “Elas expressam sensações de aflição, expectativa, trocas, de batucar na barriga da minha esposa, pirar no pandeiro e fazer um som pensando nisso”, conta. Na última faixa, Das Águas, aparece a participação especial da voz de sua esposa, Ekaterina Bessmertnova, cantora russa radicada no Brasil.
O que articula a experiência sonora de Grão em meio a canções com processos, datas e origens distintas é justamente o subtítulo do álbum. “Território Percussivo é o universo, a ampliação, a vastidão de sons, formas de batucar, sacudir, raspar, bater à toa numa com a mão ou dedos numa superfície. O que o universo oferece de possibilidades sonoras não tem fim, e ajuda a expressar coisas que às vezes não conseguimos dizer com as palavras. É uma verdade que está ali, através dos sons percussivos”, explica o multi-instrumentista.
Para ele, a arte ganha ainda maior dimensão ao chegar ao espectador, e encontrar nele possíveis mensagens, sentimentos, interpretações, entendimentos, mesmo sem palavras.
CD “Grão: Território Percussivo”, de Léo de Paula
Lançamento presencial: dia 23 de novembro, às 16h, no Museu Capixaba do Negro Verônica da Pas (Mucane) – Avenida República, 121, Centro, Vitória, com recital de Léo de Paula e a participação do Grupo de Percussão do Projeto Vale Música Serra e do Projeto Badu de Dança Afro-Brasileira, desenvolvido pela Estação Conhecimento de Serra; e das convidadas Ekaterina Bessmertnova (cantora) e Rapha Mel (coreógrafa). Evento aberto ao público.
Apoio: Projeto selecionado pelo Edital 033/2019, da Secretaria de Estado da Cultura (Secult-ES), e realizado com recursos do Funcultura.
Onde adquirir o CD: no site da FiNA Produtora – www.finaprodutora.com.br
Preço: R$ 20,00
1 – Serpente
Instrumentação: Caxambores, djembê, congas, sementes, agogôs de castanha, jam block, agogô 4 campânulas, puíta, tambor de congo.
Os chocalhos, tambores, agogôs, cocos e castanhas, além do roncador, são o clima sonoro desta faixa de abertura. A sonoridade e toda trama rítmica, timbrística e melódica se refere a Oxumaré, orixá de origem Jêje-Nagô que remonta à continuidade, ao ciclo da vida, ao movimento: nascer e renascer. Tanto a serpente quanto o arco-íris podem representar esse orixá.
2 – Ventania solo
Instrumentação: Handpan solo
Durante o período de isolamento inicial da pandemia de 2020, foi adaptado este solo para handpan (em diálogo com o arquétipo associado à orixá Iansã), que numa versão anterior contava com presença de fortes ventos, tempestades, raios e trovões junto ao beat eletrônico e ao berimbau. Nessa versão prevaleceu o caráter intimista e a influência da estética minimalista, mantendo a temática e o conceito rítmico da composição inicial.
3 – À Beira
Instrumentação: Pratos, snujs, triângulo, mini bell-tree, agogô 4 campânulas, sementes, efeito reciclável, apitos de pássaros, kalimba, handpan, rav-vast, caxicôco, caxixi, bongô, congas e tambor de congo grande.
Esta obra é a tentativa de incorporar a ambiguidade sonora de estar à beira-mar (graças à sonoridade tropical da kalimba e do handpan em harmonia com o bongô e sons orgânicos de sementes), e à beira do rio, nos domínios das águas doces ligadas a Oxum. O ijexá é um ritmo intimamente ligado à orixá que representa também a fertilidade, riqueza, beleza e amor. A sonoridade metálica que caracteriza a introdução e a coda remete às suas joias. Apitos de pássaros, congas, caxixis e tambores de língua de aço completam o ambiente sonoro da composição.
4 – Agô
Instrumentação: Marimba, djembê, caxibaça, caxixi, sementes e moringa.
É um pedido de licença para que a marimba juntamente à moringa de barro, chocalhos, sementes e o djembê ocupem seu espaço de protagonismo em uma teia sonora polirrítmica e caracterizada pela sonoridade ancestral.
Todos esses instrumentos se originaram de práticas e contextos tradicionais africanos que hoje estão espalhados mundo fora.
5 – Grão
Instrumentação: Chocalhos e sementes solo.
É uma peça escrita para diversos tipos de chocalhos. No Brasil existem inúmeros instrumentos dessa família, os usados nesta obra fazem parte de um acervo pessoal que foi se ampliando ao longo dos anos. O objetivo dessa peça não é necessariamente traduzir sons da natureza ou transportar o público ao interior da Amazônia, mas explorar o potencial musical destes instrumentos através de permutações rítmicas e riqueza timbrística. A estreia da obra aconteceu em 29 de Maio de 2015 no Centro Cultural SESC Glória (Vitória-ES).
6 – Cortejo
Instrumentação: Marimba, pandeiro, berimbau, timbal e repique.
Trata-se de um tributo a instrumentos e elementos que foram fundamentais na minha trajetória, no desenvolvimento criativo e sobretudo na essência musical enquanto compositor. Inspirada na imagem da procissão, a marimba representa o portal de entrada para a estética do repertório contemporâneo de concerto. O pandeiro foi um dos meus primeiros instrumentos musicais e certamente possibilitou a descoberta do caminho segui pelo resto da vida. O repique e o timbal representam a importância do carnaval na minha vida pessoal e profissional. O berimbau remete à busca de fugir do óbvio e ir além.
7 – Ipuan
Instrumentação: Handpan solo.
A obra foi escrita especialmente para o espetáculo homônimo de dança afro-contemporânea, cujo nome, em tupi, remete à “ilha”, também à presença de água em abundância. Faz alusão às ludicidades e subjetividades afetivas marcantes na relação com a natureza que nos cerca, em especial a água, que tem grande importância na dramaturgia e consequentemente na composição. É um solo para handpan explicitamente constituído a partir do ijexá, ritmo de origem sagrada afro-brasileira amplamente difundido na música popular brasileira e incorporado a diversas manifestações artísticas, como os afoxés.
8 – Xirê
Instrumentação: Congas, bongô, caxixis, tambores de congo, cowbell, djembê e timbal.
Esta peça remete à atmosfera das festas públicas dos candomblés em que se executam toques, cânticos e danças relacionados aos orixás invocados. Diversos tambores, além dos caxixis e cowbells são os protagonistas desta faixa.
Andryusha: forma carinhosa atribuída ao nome Andrey. É uma obra em três movimentos escrita para o meu filho: Andrey Bessmertnov de Paula. O processo de composição se deu a partir de um mergulho na gestação, no nascimento e nos primeiros meses de vida e desenvolvimento, já repletos de estímulos artísticos criativos.
9 – Jdu tibiá
Instrumentação: Kalimba solo.
Este primeiro movimento da obra “Andryusha” foi escrito durante a gestação do Andrey. Expressa as inquietações, receios, dúvidas e expectativas decorrentes de uma gravidez cuja maior parte atravessou a pandemia Covid-19. A construção gradativa de cada seção da obra está diretamente relacionada ao desenvolvimento das etapas gestacionais.
A sonoridade minimalista deste solo, ao mesmo tempo doce e instigante, é decorrente do timbre característico da kalimba, instrumento oriundo dos povos bantos (desde o século XVI presentes no Brasil), e do caráter polirrítmico da composição.
10 – De lá e de cá
Instrumentação: Pandeiro preparado solo.
Este movimento solo de pandeiro preparado – instrumento que dispõe de um mecanismo que controla a sonoridade das platinelas – originou-se das interações que aconteceram a partir do sexto mês da gestação, quando batidas e empurrões do Andrey se tornaram mais sensíveis e visíveis. Aqui, a herança da musicalidade brasileira se expressa através de citações, adaptações e ressignificações de ritmos típicos brasileiros que se juntam a movimentos uterinos e à expectativa crescente até o momento do nascimento. A partir de fragmentos de samba, frevo, funk, ijexá, forró e processos de construção composicional minimalista, tenta traduzir a emoção de já estabelecer trocas entre pai e filho.
11 – Abrandamento
Instrumentação: Tambor de língua de aço “Orion”.
O terceiro movimento é um solo para tambor de língua de aço, especificamente o “orion modelo regular em Dó sustenido”. Nos últimos meses da gestação, a tensão e a apreensão ficaram muito presentes. A motivação deste solo foi abrandar os ânimos. Já nos primeiros meses de vida, as reações do Andrey ao colorido sonoro dos harmônicos da melodia principal tocada ao Orion mostraram que este movimento também o acalmava, acalentando suas breves sonecas.
12 – Das Águas
instrumentação: Rav-vast, djembê, tar, caxixis, saculejê, sementes, conchas e efeito reciclável.
Na tradição sagrada afro-brasileira, a água está associada à criação, à fecundidade e à calma. Os mistérios e segredos das profundezas oceânicas povoam o imaginário dos compositores desta obra que conta com sons marinhos e batuques junto a um canto envolvente e intrigante que remete às sereias e outras figuras lendárias do imaginário popular.