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‘A periferia é um caldeirão cultural’, diz rapper Crônica Mendes

Artista que participou de um dos grupos mais importantes do rap nacional se apresenta pela primeira vez no Espírito Santo

Ex-integrante do A Família, dos grupos clássicos do rap brasileiro, Crônica Mendes é um artista de longa trajetória enraizada no movimento hip hop mas também atento a outras influências e diálogos possíveis. Neste final de semana, ele estará pela primeira vez no Espírito Santo para apresentar seu trabalho.

No sábado (18), ele participará do Sarau Mandela, que acontece a partir das 15h na Estação Cidadania de Ilha das Flores, em Vila Velha. O evento contará também com apresentações de Jefinho Faraó, MC Adikto, Conteúdo Paralelo, Jone BL, Musca, Vila Velha Força Break e artistas locais.

Mais tarde, a partir das 19h, ele será uma das atrações do Prêmio Doggueto, a mais tradicional premiação do hip hop capixaba, em cerimônia que terá início às 19h com transmissão pela TVE em televisão aberta e pelo YouTube, em evento que terá como atrações ainda shows de Melanina MCs, grupo de mulheres capixabas, e Primeiro Gueto, da Bahia.

Divulgação

Como foi seu início na cultura?

Eu comecei no rap de forma libertadora, para poder desprender e me comunicar melhor com o universo ao meu redor. O rap traz essa linguagem, essa identidade e essa pluralidade que é você se sentir empoderado, ter sua autoestima resgatada, se sentir pessoa importante em meio à sociedade e não apenas mais um na multidão.

O rap veio para mim dessa forma, como válvula de escape, às vezes da timidez, às vezes do medo de não ser aceito, mas também com instrumento de comunicação social. Eu podia me comunicar melhor no meu bairro, com amigos e, principalmente, com minha própria família.

Porque eu venho de uma geração que não tinha muito diálogo com a família, os pais estavam o tempo todo trabalhando, as mães estavam o tempo todo trabalhando. Eu, que sou filho de mãe solteira, nem sempre tinha um diálogo com minha mãe. Então o diálogo estava onde? Estava nas ruas, nas escolas. Então por ter medo, por ser tímido, eu também era bloqueado nesse locais de diálogo.

E foi através da arte e da cultura hip hop que eu comecei a escrever, comecei a me identificar e saber do poder do uso da palavra e do poder do uso da escrita. Foi aí que eu me encontrei dentro do rap nacional, nessa raiz do hip hop, e comecei a fazer o uso dela como instrumento de transformação interna, uma revolução pessoal. Para que depois eu pudesse estar municiado e à vontade para transmitir essa mesma provocação que aconteceu comigo e essa mesma transformação para os demais jovens à minha volta através das minhas próprias letras, do discurso, da minha vida, de eu estar vivo. Porque o rap na minha época vem de uma geração em que a juventude praticamente não tinha expectativas. Éramos assassinados muito mais do que somos assassinados hoje.

Então através da minha letra, tudo isso se tornou uma ferramenta de combate à baixa autoestima, para o resgate da nossa estima, da nossa importância, da nossa história, e para nossa luta contra a violência social, policial, psicológica, e mais outras bandeiras que o hip hop vem combatendo nas periferias desde sua essência, desde sua gênese aqui no Brasil.

Como vai ser o show em Vila Velha? O que vai trazer no repertório?

Tudo está sendo especial relacionado ao Sarau Mandela e o Prêmio Doggueto, que são as duas apresentações que vou fazer. É a primeira vez que estou pisando em solo do Espírito Santo através de minha cultura, de pessoas que se identificam com minha arte, com minha cultura, nos tornando assim irmãos pela cultura. Quando digo cultura, digo como um todo, a cultura de transformação, de entretenimento, de provocação. Então está sendo muito especial poder estar aí pela primeira vez.

O público pode esperar no repertório do meu disco novo, o Eleve-se, que recebeu o prêmio de melhor disco do ano pela premiação Quinto Elemento do Hip Hop. O público pode esperar muita música como entretenimento também, com consciência, diversão, alerta, reflexões e muita musicalidade, muito encontro de música de vertentes musicais. O Espírito Santo tem muito isso, faz esse encontro de vertentes musicais, desenvolvendo certa originalidade com essa junção de vertentes.

Vai ter essa pluralidade musical, esse impacto musical por meio da batida do rap, da letra, um show com interpretação com uma entrega e também com a musicalidade de outras vertentes que influenciam muito dentro do meu trabalho. E como é a primeira vez que vou estar no Espírito Santo, não posso deixar de cantar os clássicos da minha trajetória que me trouxe até aqui, como Castelo de Madeira, Brinquedo Assassino, Sopra Lobo Mau, Farsa por Amor, entre outros clássicos que eu faço questão de manter no meu repertório, porque eu entendo que a geração que consome o rap vai se renovando, e nós precisamos acompanhar essa renovação sem perder a nossa essência.

Estou muito feliz e tenho certeza que vou voltar com minha bagagem muito mais enriquecida musicalmente e artisticamente. Quero aprender muito com os artistas locais, existe já planejamento de desenvolver uma música juntos, eu e vários artista do Espírito Santo já estamos trabalhando nisso e muito em breve público vai poder conferir essa música, num encontro de culturas, gerações, provocações, sem esquecer o lado de entretenimento que o rap precisa ter.

Já que a música que vem para o povo de periferia precisa também tentar entreter nosso povo, amenizar o sofrimento do dia a dia, para que possa ter uma fuga momentânea do caos do nosso cotidiano e nessa fuga ele possa se alimentar de conhecimento, para quando voltar para esse lado de cá, estar mais forte, ter uma armadura que possa o fortalecer.

Qual a importância de eventos como o Sarau Mandela, ao reunir diversos artistas de cena em espaços de periferia?

A importância dos saraus na história do rap e hip hop é algo a ser estudado. A cena de saraus teve um boom num momento em que o rap nacional estava meio esfriando, porque ficava pensando qual novo horizonte a ser explorado, como se o horizonte explorado até aquele presente momento já tivesse esgotado.

E o rap se perguntava se deveria manter uma classe militante ou expandir mais para a classe artística e como isso deveria ser feito. Se fosse pra ficar na militância, como deveria ser feito, e se fosse para expandir a classe artística, como deveria ser feito, se fosse para seguir os dois, como deveria ser feito.

Então o rap estava meio pausado, digamos assim, em alguns lugares, claro que isso não é generalizado, essa pausa não é generalizada, mas foi nessa pausa que os saraus tiveram boom em todas as periferias.

Em São Paulo temos o sarau da Cooperifa que é um dos pilares, gosto de dizer que o sarau da Cooperativa é o Racionais da literaturas, assim como o Racionais está para o rap nacional, acredito que o sarau da Cooperifa está para a literatura periférica em questão de importância, de referência.

Foi nos saraus que os rappers começaram a se encontrar com outros artistas, do reggae, do artesanato, da literatura e de outras linguagens e expressões periféricas. Serviram como ponto de encontro de vários artistas e expressões periféricas, vertentes da cultura da periferia e até mesmo de fora dela. Do olhar de um fotógrafo de fora, ou o olhar de um jovem que se descobre fotógrafo frequentando um sarau e olhando aquelas imagens na mente a imagem enquanto uma poetisa recita seu poema, isso também vai revelando novos talentos, novos olhares para o hip hop e para a literatura de periferia.

Essa é a importância tanto do Sarau Mandela, que traz esse nome super potente, como os demais saraus que acontecem nas periferias do Brasil. Para mim estar num sarau é pisar no solo sagrado da cultura de periferia.

Como você entende o papel que o rap e o hip hop podem desempenhar nesses locais?

Acho que nosso papel é contar nossa história. Não basta só cantar, só escrever, precisamos contar nossa historia, mas também não basta só contar. Precisamos contar da nossa maneira, porque acabou essa história de que na periferia só se tem futuro como jogador de futebol ou futuro funkeiro ou rapper. A periferia é um caldeirão cultural, é o Brasil. O Brasil não é o centro, o Brasil é a periferia. E a parte do Brasil que é o centro é uma parte movida pela periferia. Então o Brasil é uma imensa periferia, isso é muito importante frisar.

Nosso papel como artista de periferia é contar nossa história, da nossa formação, nossa entrega, com nossa caneta, nossa palavra, nosso timbre, em nosso tom, com nosso olhar, para que a gente possa ter aí um movimento inverso, não só a periferia indo para o centro, mas também que os do centro possam vir para a periferia para ampliar o seu olhar para além daquele que se mostra na televisão de como somos desse lado de cá.

É importante. Eu enquanto artista de periferia, como artista brasileiro, entendo a importância de ter outros olhares no meu trabalho que não sejam somente olhares de dentro da periferia, é preciso ter olhares de fora da periferia para seu trabalho também.

Porque se tem olhares e disposição de fora da periferia que querem somar e esse tabu, a gente precisa quebrar. A arte da periferia, feita na periferia, para a periferia, ela nunca pode ser fechada, impossibilitando a oportunidade de um olhar de fora da periferia que vem para somar. Mandela tinha essa visão, por isso começou a lutar contra o apartheid. A gente precisa cada vez mais de olhares que possam somar, fortalecer e transformar do nosso lado, venham de onde vierem esses olhares e essas ações.

Entendo que nosso papel como artistas responsáveis por quebrar tabus, derrubar esse muro que nós do próprio movimento hip hop construímos e nós da periferia construímos, e principalmente derrubar esse muro que a burguesia criou de que o que era para eles é de conceito e o que é para nós é ralé. O que é para nós é o que quisermos que seja para nós.

Só que para isso nós precisamos ampliar nossa visão, porque muitos dos nossos ainda acham que o coitadismo é para nós e que o clássico é para eles. Precisamos quebrar esse tabu. Consumir literatura periférica é importante, mas consumir os clássicos também. Tem muita gente na periferia escrevendo, mas tem pouco gente lendo, já dizia o poeta Sérgio Vaz.

Então nosso papel ainda é e sempre será como agentes multiplicadores dessas visões, agentes multiplicadores da nossa cultura, e agentes transformadores, pois transformar a vida de uma pessoa através da arte e da cultura é fundamental para sonharmos com um futuro melhor e não com um futuro aterrorizado. Esse é o nosso papel, de agentes transformadores, multiplicadores e provocadores. E estar junto de fato. Ainda que ascendendo, nunca esquecer onde começou o pavio.

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