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Rede Bem Viver apoia camponeses na transição agroecológica

Desafio é unir campo e cidade em torno da alimentação saudável, com base na produção ecológica e comércio justo

“Em síntese, a rede é um trem, é um troço”, brinca Douglas Alvaristo, quando o peço para definir a Rede Bem Viver, projeto do qual é um dos coordenadores. Faz muito sentido, pois um troço geralmente é algo simples na essência mas difícil de explicar. Tal qual a agroecologia, objeto central deste projeto.

“É um processo ou um jeito organizativo, político e pedagógico que o MPA construiu aqui no Espírito Santo, para que se pudesse permitir o avanço da agroecologia”, complementa o militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Criado em 2017 e ganhando maior impulso a partir de 2018, a rede hoje aglutina cerca de 140 agricultores e os articula também com consumidores diversos, dentro de uma estratégia do Programa de Aceleração da Transição Agroecológica, construído pelo movimento camponês.

Divulgação

“Quando se fala em meio ambiente, água, ar, solo, tudo isso é pensado como responsabilidade de quem está no campo. Mas na verdade é uma responsabilidade compartilhada, porque quem consome, na hora de comer, está fazendo uma opção pelo modelo de desenvolvimento”, aponta Douglas. Como se diz, comer é um ato político, embora nem todos tenham as melhores condições para poder tomar essa decisão ao se alimentar.

Na Rede Bem Viver, são muitos conhecimentos, saberes e conceitos envolvidos. Grupos de Produção, Metodologia Camponesa a Camponês, Transição Agroecológica, Biopoder Camponês e Organismos de Controle Social. Mas o principal não é espalhar tanto definições e, sim, práticas. E como se costuma dizer, o camponês acredita mais do que vê do que no que ouve dizer. Fazer a agroecologia acontecer lá nos territórios onde vivem e trabalham as famílias é a melhor forma de espalhar a ideia, a boa-nova tão antiga como tradicional: plantar de forma ecológica, sem envenenar a natureza nem as pessoas, como fizeram nossos ancestrais.

Engana-se quem no conforto da urbe possa pensar que é tarefa fácil. A chamada agricultura convencional, defendida pelas grandes corporações agrícolas e seus pacotes de agrotóxicos, se enraizou de forma implacável no campo brasileiro e mundial.

Para transicionar deste modelo para a agroecologia não basta apenas boa vontade, é preciso muito trabalho e conhecimento de alternativas. Algumas delas foram apresentadas no III Encontro da Rede Bem Viver, que aconteceu no dia 3 de dezembro em Vila Valério, no noroeste do Espírito Santo, reunindo agricultores da rede e diversas entidades parceiras.

III Encontro da Rede Bem Viver reuniu agricultores e parceiros em Vila Valério. Foto: Divulgação

O encontro trabalhou vários aspectos para pensar a agroecologia, desde a produção até a comercialização.

A família Fabem, de São Mateus, apresentou sua experiência na produção e aplicação de biofertilizantes nos cultivos, impulsionada a partir da Rede Bem Viver, utilizando produtos naturais e em sua maioria disponíveis na própria propriedade rural, tornando o processo sustentável ecológica e economicamente. O exemplo e os resultados visíveis a olho nu na vitalidade dos roçados chamaram a atenção dos vizinhos, que também quiseram conhecer a tecnologia, que é relativamente simples e barata.

A família Marim, de Barra de São Francisco, apresentou o processo de agricultura sintrópica, que trabalha na perspectiva de aliar preservação e produção ao mesmo tempo na prática agrícola. “O mais importante no sintrópico, dizem, é o manejo. É 5% plantio e 95% manejo, por meio de sistema de podas”, diz Sérgio Marim. Ele conta aos demais agricultores sobre o sistema, em que planta-se algumas espécies estrategicamente apenas para serem cortadas e servirem como nutrientes para o solo, cuja saúde é fundamental para a agricultura.

A família Wruck, de Domingos Martins, contou sobre as estratégias de marketing usadas no processo de divulgação dos cafés especiais produzidos, que crescem no mercado com a qualidade do produto e de sua apresentação.

Moradores do município anfitrião, Vila Valério, outra família, Luck, contou sobre os processos de comercialização e as estratégias e inovações adotadas, especialmente diante do momento de pandemia, que forçou a transformação nas formas de comércio.

Enquanto os agricultores e parceiros se encontram e trocam experiências, a rede se fortalece. A assistência técnica rural para a agroecologia ainda é um desafio, explica Douglas Alvaristo. Quando é pública, ainda é frágil, com poucos recursos e pouco pessoal voltado para o manejo agroecológico. No âmbito privado, está vinculada a empresas que lucram e vendem agrotóxicos. E quando feita pelas próprias organizações sociais, representa um custo muito alto.

Por isso, inspirado no método cubano, o MPA e a Rede Bem Viver vêm impulsionando o modelo “De Camponesa a Camponês”, no qual os próprios trabalhadores rurais usam estratégias de apoio entre si. “Há uma percepção de ajuda mútua, se avança de modo solidário e não individualista”, diz o dirigente. Na agroecologia não cabe a figura do técnico agrícola tradicional, que traz o diagnóstico e as soluções a serem dadas às famílias em seus cultivos. A figura do técnico é bem-vinda, mas deve ter como base o diálogo e a troca de conhecimentos de forma horizontal, afinal, ninguém conhece mais cada pedaço de terra que os próprios agricultores familiares que nela atuam.

Divulgação

Para o fortalecimento das famílias que atuam na com base na agroecologia, a Rede Bem Viver tem impulsionado a organização de grupos de produção, comercialização e consumo locais. Os grupos são organizados a nível municipal e podem avançar para formar Organizações de Controle Social (OCS), um instrumento da legislação brasileira de produção orgânica que permite a venda direta, em delivery ou comercialização em programas de compras públicas a partir de relações de confiança entre famílias produtoras e consumidores.

Um passo que a rede ainda almeja é conseguir construir a primeira experiência de Sistema Participativo de Garantia (SPG), no Espírito Santo, um passo mais complexo de certificação orgânica, de modo participativo e alternativo à Certificação por Auditoria, feita por empresas certificadoras, que podem ser mais custosos para os agricultores. Nesse sentido, o primeiro semestre de 2022 deve ser fundamental para o avanço da iniciativa do SPG no Estado, dentro de um planejamento para que todos documentos necessários sejam enviados para os órgão responsáveis no ano que vem.

A pandemia, evidentemente atrasou este e outros processos planejados pela rede. “Foi necessário redesenhar tudo, suspender as atividades presenciais, realizar ações online, com toda dificuldade que ainda representa para o agricultor ter acesso à internet com boa conexão”, conta Douglas.

As formas de comercialização também precisaram ser revistas, o que foi agravado pela destruição das políticas nacionais de apoio à produção e de compras públicas da agricultura familiar. Mas desistir nunca foi uma opção para quem vive da terra para colocar alimentos na mesa de sua família e de muitas outras. Logo no início da pandemia, o movimento conseguiu avançar nas entregas em delivery, e logo construir outras alternativas de comercialização, como a parceria com organizações sociais para venda de cestas agroecológicas, além de ter realizado doações para famílias em situação de maior vulnerabilidade.

Como bom evento camponês, o III Encontro da Rede Bem Viver foi permeado por boa comida e café, mística e música. O refrão de umas das canções entoada acompanhada pela viola resumia o espírito: “Este é o interior, lugar de luta, esperança e muito amor”.

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