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Controversas, Comunidades Terapêuticas ganham poder e recursos

Com Rede Abraço, criada por Casagrande, entidades religiosas tratam dependentes químico com recursos públicos

A dependência de álcool e droga é uma questão muito delicada para usuários, famílias e pessoas próximas. Porém a forma de tratar a questão encontra visões distintas no Brasil. Uma é a consolidada política de redução de danos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), e outra, centrada na abstinência total por meio de internações em Comunidades Terapêuticas (CTs), em sua grande maioria ligadas a entidades religiosas.

Apesar de ir no sentido contrário das políticas contra o modelo asilar, em que há internação, essas chamadas Comunidades Terapêuticas têm ganhado cada vez mais espaço, poder e recursos públicos nas últimas décadas, inclusive no Espírito Santo. “Essas entidades vêm na contramão de políticas desenvolvidas há mais de 30 anos a partir da reforma psiquiátrica e antimanicomial, reforçando o isolamento do sujeito numa perspectiva baseada na fé e no labor, no trabalho e na oração, na perspectiva de que vão se recuperar simplesmente pela religião, que estariam nessa condição por falta de Deus em suas vidas”, explica Fabíola Xavier Leal, professora do departamento de Serviço Social e integrante do Grupo Fênix, que realiza pesquisa e extensão na área de dependência de álcool e drogas.

Segundo pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) , 82% das Comunidades Terapêuticas no Brasil estão vinculadas a igrejas, especialmente as de matriz cristã. O Conselho Federal de Psicologia aponta que muitas delas impõem uma rotina rígida e obrigatoriedade de participação em atividades religiosas.

Além da polêmica sobre a internação em si, ela é feita muitas vezes em lugares distantes de onde os internados são originário e envolve a obrigação de trabalhar na venda de produtos, o que configuraria trabalho análogo à escravidão, além de outras violências, como políticas de isolamento, pouco contato com a família e punições realizadas a quem não cumpre as normas, incluindo violações físicas, psicológicas e sexuais, tudo em oposição ao que vem sendo construído como tratamento a partir das perspectiva de redução de danos.

“Chegamos a visitar uma Comunidade Terapêutica em que havia uma jaula para onde as pessoas eram enviadas durante crises graves de abstinência, tendo que colocar-se no local abaixada, já que não havia espaço suficiente para permanecer de pé. Alimentação e recipientes para fazer as necessidades fisiológicas eram enviados pelas grades”, conta Fabíola, que chegou a visitar todas as CTs do Espírito Santo em 2015. Algumas das entidades chegaram a ser fechadas após denúncias no Ministério Público. Porém, muitas outras também foram criadas.

Influência política de igrejas cristãs

As CTs passam a fazer parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Brasil a partir de 2011, no embalo de intensas discussões sobre o tema do vício em crack que ocorreu entre os anos 2008 e 2010, chegando a ter destaque no debate eleitoral, pressionando a então presidente reeleita Dilma Rousseff (PT) a tomar novas medidas. Isso se dá num processo progressivo de acúmulo de forças e poder de pressão dessas instituições e das igrejas, especialmente as evangélicas neopentecostais, o que já vinha ocorrendo desde a década de 1990, crescendo ainda mais depois dos 2000 e conquistando representações expressivas nos poderes Executivo e Legislativo.

Muitos políticos da bancada evangélica têm proximidade ou até relação direta com as Comunidades Terapêuticas, como é o caso do ex-senador Magno Malta (PL), dono de clínicas do tipo. No caso da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, quatro dos cinco integrantes Comissão de Proteção à Criança e ao Adolescente e de Política Sobre Drogas são apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL). No final do ano passado, a Câmara Federal aprovou projeto que inclui comunidades terapêuticas entre as entidades que contarão com imunidade tributária de contribuições à seguridade social, demonstrando mais uma vez a força política e a capacidade de lobby dessas entidades.

Na época do estudo do Ipea, em 2017, 25% das CTs recebiam recursos públicos, aliados com outras fontes de arrecadação, como contribuições de familiares dos internados, vendas de produtos, doações de igrejas e instituições religiosas e de entidades internacionais. Porém, de lá para cá, aparentemente o processo tem se intensificado. No plano federal, a transferência de recursos vem aumentando ainda mais durante o governo de Jair Bolsonaro, quando já em seu terceiro mês de governo 496 CTs assinaram contratos com o Ministério da Cidadania, que repassou mais de R$ 150 milhões a entidades do tipo.

“Se esses recursos fossem aplicados nos serviços da RAPS, seria muito melhor”, diz a professora. Ela considera que há uma defasagem nos serviços existentes no Espírito Santo para atendimento de pessoas por meio dos CAPS AD, voltados a pessoas com dependência de álcool e outras drogas em alguns municípios, assim com não há um Centro de Convivência nem Unidades de Acolhimento, com serviços de funcionamento 24h, que possam atender às necessidades desse público e acolher em caso de crises, inclusive com estrutura ambulatorial.

Transferência de recursos públicos no Espírito Santo

Um estudo feito pelo Grupo Fênix abrange o acompanhamento dos gastos públicos com as políticas sobre drogas no financiamento de CTs no Espírito Santo de 2013 a 2020, a partir de dados públicos, obtidos em sua maioria de sites oficiais. A data de 2013 como referência se dá por conta da criação do Programa Estadual de Ações Integradas sobre Drogas, conhecido como Rede Abraço, criado na primeira gestão de Renato Casagrande (PSB) tendo como eixo principal financiar as Comunidades Terapêuticas. Na gestão seguinte, de Paulo Hartung (hoje sem partido), o projeto teve nome alterado para Programa Integrado de Valorização à Vida (Proviv), sem mudar a questão central, voltando a adotar o nome inicial com o retorno de Casagrande ao governo em 2019.

Os estudos do Grupo Fênix mostram que no primeiro ano da Rede Abraço, 2013, o valor destinado às instituições representou 5,29% do total dos recursos da política sobre drogas. No ano seguinte, o aumento foi de 400% e o número de CTs credenciadas para receber recursos saltou de 8 para 17 de um ano para o outro. Em 2014, os mais de R$ 8,3 milhões direcionados às Comunidades Terapêuticas representaram praticamente dois terços (65,24%) do gasto público total na política sobre drogas. O direcionamento dos recursos é feito por meio de editais lançados pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos (Sedh), onde se localiza a subsecretaria de Políticas Sobre Drogas, responsável por esse tema.

Embora depois de 2014 tenha havido queda na quantidade de CTs habilitadas e nos volumes totais tanto dos recursos destinados a elas como à política geral sobre drogas, houve uma certa constâbcua no fato de que um alto percentual da política foi destinada às entidades que trabalham com internação de pacientes. Ao longo dos anos, foram identificadas 26 Comunidades Terapêuticas aptas a receber recursos públicos, das quais 15 localizadas na região metropolitana da Grande Vitória. Porém, Fabíola Leal aponta que a fiscalização das entidades e de suas práticas internas são praticamente inexistentes, mesmo naquelas que recebem recursos públicos para seu funcionamento..

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