Fórum de Mobilidade repudia passageiros em pé em ônibus nos terminais. “E viva o lucro!”, ironiza Ethel Maciel
A permissão dada pelo governo do Estado para que os ônibus do Sistema Transcol saiam dos terminais urbanos com passageiros em pé é repudiada por movimentos sociais e especialistas em saúde pública ouvidos por Século Diário.
Publicada no Diário Oficial desta segunda-feira (24), a Portaria Conjunta das secretarias de Estado da Saúde e da Mobilidade e Infraestrutura (Sesa e Semobi) nº 002-R oficializa uma irregularidade que já vinha acontecendo na prática, avalia Clemilde Cortes, presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e uma das coordenadoras do Fórum de Mobilidade Urbana do Espírito Santo, formado por sindicatos, mandatos parlamentares e movimentos sociais.
“Os ônibus já estavam como ‘latas de sardinha’. Agora, com a decisão do governo, deve piorar. Parece que a cultura da morte está assolando o Estado também, não só o governo federal. É um contrassenso. A Saúde fala uma coisa e as outras pastas fazem outra” critica Clemilde Cortes.
No texto da Portaria, assinada pelos secretários de Saúde e Mobilidade, Nésio Fernandes e Fábio Ney Damasceno, a justificativa é “a progressão da cobertura vacinal no Estado do Espirito Santo e a flexibilização das medidas de distanciamento social e o retorno gradativo das atividades comerciais, sociais e educativas, consolidados pelo novo mapa de risco”. Apenas o uso de máscara é exigido.
A medida será alvo de questionamento por parte do Fórum, acredita a mobilizadora. “Vamos questionar o governo e também a Assembleia Legislativa. O Conselho de Transporte Coletivo Intermunicipal (CGTRAN/GV) precisaria ser ouvido sobre uma decisão dele. Ele não tem que se reunir apenas pra legitimar o aumento anual das tarifas dos ônibus”, expõe.
Esse último contrassenso do Executivo, pondera Clemilde, reforça a necessidade de debate sobre a pauta ampliada que o Fórum defende em relação à mobilidade, para além das questões específicas sobre transporte coletivo, e que será levada para a audiência pública em gestação.
“Quando a gente fala de trânsito, precisa lembrar que a prioridade são as pessoas e não os carros ou as empresas de ônibus. Mas lamentavelmente o Estado e as prefeituras fazem concessões sem nenhum diálogo com a população”, aponta, lembrando também da situação dos cobradores de ônibus, que foram retirados dos coletivos no auge da primeira onda de Covid-19 sob a justificativa de que o não manuseio de dinheiro dentro dos ônibus reduziria as contaminações. “Está tudo sendo liberado e os cobradores não voltaram”, critica, apoiando a pauta da categoria, de retorno desses trabalhadores aos seus postos.
“E viva o lucro!”
Em suas redes sociais, a doutora em Epidemiologia Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisadora da Escola de Saúde Pública de Harvard e da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, também se posicionou contrariamente à permissão dada pelo governo.
“No início da pandemia eu disse que exista um falso dilema entre saúde pública e economia. Eu errei, durante a pandemia, compreendemos que existem vidas que valem muito pouco”, lamentou. “E viva o lucro!”, ironizou a cientista, que desde o início da pandemia tem jogado luzes sobre a falta de dignidade crônica no transporte coletivo e a oportunidade que a crise sanitária trazia para que soluções definitivas fossem implementadas.
Em junho de 2020, o inquérito sorológico feito pela Sesa, apontava que os ônibus e as casas muito cheias de moradores eram os locais de maior risco de contaminação.
Idec: mudanças nos contratos
Atento ao problema da falta de qualidade e segurança sanitária do transporte coletivo, que não é exclusividade do Espírito Santo, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) sugeriu uma medida que pode trazer mudanças significativas.
Em matéria publicada em dezembro de 2021, o Idec disse que “a situação que enfrentamos hoje é consequência de contratos problemáticos feitos pelas prefeituras com as empresas de transporte. Neles, as empresas são remuneradas pela tarifa paga pelo usuário, e não pelo custo que têm para gerenciar e operar o sistema de transporte”.
Coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec, Rafael Calabria, explicou que, “dessa forma, para aumentar seus lucros, essas companhias tendem a reduzir a frota, colocando o maior número de pessoas nos veículos, e a aumentar a tarifa com frequência”. Assim, “a prática da lotação [que] não é uma novidade, se tornou gravíssima e um caso de vida ou morte, diante da crise sanitária”, sublinhou o Instituto.
O coordenador de Mobilidade Urbana aponta que uma solução a médio e longo prazo seria a revisão dos contratos assinados entre o poder público e as empresas, de forma a remunera-las pelo custo do sistema, dinheiro que, por sua vez, precisaria vir de fontes diversas e não apenas da tarifa paga pelo passageiro. “Entre as alternativas estão, por exemplo, repasse de dinheiro por estados e pelo governo federal; verba proveniente de publicidade no interior dos veículos, estações, pontos de ônibus e terminais; dinheiro arrecadado com impostos sobre combustíveis de automóveis individuais etc.”, elenca Calabria.