Como em um passe de mágica, o sujeito eliminou dois meses do calendário gregoriano
O sujeito atrás de mim no caixa do supermercado comenta: Não acredito que hoje é o último dia do ano, amanhã já é março. Olho em volta, ninguém riu nem chorou. Como em um passe de mágica, o sujeito eliminou dois meses do calendário gregoriano. Esse pequeno incidente ocorreu no dia 28 de janeiro, ano da graça de 2022. Adeus janeiro, bem vindo fevereiro! Curto e quente, mas relevante: sem ele não chegaremos a março. Portanto, um rito de passagem. Tá todo mundo pegando o ômicron sem sintomas, e vão repassando tipo corrente da sorte: não interrompa ou uma desgraça ocorrerá na sua vida.
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Na minha alegre juventude alegrense essas correntes eram comuns. E como ainda aguardávamos ansiosamente o advento da Internet, circulavam pelo correio. Sim, houve um tempo em que as interações entre pessoas distantes eram feitas pelo correio, exigindo envelope, papel e selo – sem a cola. Eram geralmente orações: mande para dez pessoas e você receberá uma bênção, ou um milagre. Algo muito importante vai acontecer na sua vida. Mas se quebrar a corrente, no futuro um vírus terrível vai te pegar… A gente quebrava assim mesmo, mas ficava um gostinho de fel na boca – E se… O futuro mora longe, será que lá pelo ano de 2020…
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Um dia o carteiro chegou com uma carta na mão – endereçada à minha inexperiente pessoa, vinda do Rio Grande do Sul. Não é todo dia que o inusitado nos bate à porta. Primeiro, pela localização. Quem lá no Rio Grande do Sul, nos pampas tão longínquos, me escrevia? Nesse tempo eu não conhecia nem Cachoeiro, onde a mãe do Roberto Carlos ainda engatinhava. Segundo, pelo conteúdo – Mande um brinco para sete pessoas, e você receberá 49 brincos. Tipo milagre da multiplicação dos pães.
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Diz o vulgo que a curiosidade matou o gato, portanto, mandei e nunca recebi nenhum de volta. O que foi um alívio – o que faria eu com 49 brincos, em um tempo em que as mulheres – e somente as mulheres – tinham apenas um brinco de estimação eternamente espetado nas orelhas? Esse inusitado evento até hoje me traz insônia, não pelos 50 brincos perdidos para sempre, mas pela crucial pergunta que não quer calar: Quem? A missiva – como era elegante dizer então, não trazia remetente.
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Certa vez quis enviar uma carta sem afixar meu nome e endereço lá no alto à esquerda – o correio vetou. Explico que mesmo se a carta não chegar ao destinatário, não a quero de volta. Não aceitaram. Portanto, a carta do longínquo Rio Grande do Sul “por quanto tempo rondaram as minhas noites vazias”. Talvez isso explique minha admiração por Elis Regina. Teria a respeitada instituição dos correios e telégrafos me passado uma pegadinha? Ou alguém que cobiçava meu único e ainda hoje saudoso brinco?
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A maré do tempo tudo arrasta – o ontem acabou, olha pra frente! Talvez o ano que começa não será igual àquele que passou. Não se iluda, tudo se refaz e volta disfarçado de novidade. Basta olhar os filmes em cartaz – tudo remake! As correntes da sorte tentaram um renascimento quando a Internet engatinhava. Sumiram, ninguém teve medo das ameaças de extinção em massa. Mas se você receber uma carta desbotada, vinda de um lugar inusitado, com um brinco de pérola dentro, me manda que é meu.