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Vítimas da greve da PM, pretos e pobres entram na ‘política do esquecimento’

Movimento de fevereiro de 2017 provocou a maior crise da segurança pública do Estado

“Pelo direito humano à memória, verdade, justiça, reparação e responsabilização!”. A frase abre a nota de protesto divulgada pelo Fórum Capixaba de Lutas Sociais e o Movimento Nacional de Direitos Humanos, nesta sexta-feira (4), data que marca os cinco anos da greve da Polícia Militar, em 2017, quando ocorreu o “assassinato de mais de 300 pessoas pelo braço amado do Estado”, que atinge mais as pessoas pobres e pretas.

“Os familiares das vítimas ainda não sabem o que aconteceu, porque existe uma política de esquecimento, sem reparação das perdas dos familiares das mais de 300 vítimas e a ampliação das ações de extermínio da população preta e pobre”, denuncia a psicóloga Ana Heckert, integrante do fórum, que destaca a prática adotada pelas forças de segurança, que consiste em matar, encarcerar e depois investigar.

A nota aponta que “a política de “segurança” de Hartung [Paulo] e de Casagrande [Renato] se vale de medidas arbitrárias, punitivistas, que fixam um estereótipo de inimigo supostamente comum da sociedade, reprime, seleciona, encarcera em massa e mata – é a perversidade de Estado que atinge, sobretudo, os jovens negros e pobres”.

No mesmo tom, o ativista Isaías Rocha, do Movimento Negro e pai do militante social Lula Rocha, falecido em 2021, aponta a prática de violência contra pobres e pretos, para denunciar o “racimo estrutural e institucionalizado”, acobertado no falso argumento de combate ao tráfico de drogas. “Os crimes durante a greve, inclusive assassinatos, não foram investigados como deveriam e ninguém foi punido”, afirmou, destacando que a população pobre foi a mais a mais atingida.

Ambos, Ana e Isaías, lembram que essa situação se mantém e citam a agressão de que foi vítima o educador social Feijó, no último dia 2, no bairro Vasco da Gama, em Cariacica, depois de ser abordado por integrantes da guarda municipal. Negro, foi levado a uma delegacia acusado por desacato a autoridade. E ressaltam o clima racista no país, onde a cada dia ocorrem agressões e assassinatos de pretos.

“Os traficantes famosos não moram nos morros”, diz Isaías, para criticar, da mesma forma que Ana Heckert, a forma violenta empregada pelas forças policiais em ações realizadas em locais considerados periféricos. Entram sem mandado e praticam todo tipo de violência. Durante a greve, esse contexto foi exposto sem que houvesse qualquer política de reparação.

A greve da Polícia Militar explodiu em 4 de fevereiro de 2017, com duração de 21 dias, resultante da falta de diálogo e do arrocho fiscal imposto pela política neoliberal do então governador Paulo Hartung, que sucateou as forças de segurança e gerou perdas a outros segmentos sociais, entre eles o restante do funcionalismo público.

O movimento tomou força com mulheres e familiares dos policiais militares realizando bloqueios nos batalhões da corporação na Grande Vitória e em cidades como Linhares, Aracruz, Colatina e Piúma, impedindo a saída de viaturas e de policiais em serviço. A crise aumentava e motivou o governo do Estado a requisitar a Força Nacional de Segurança.

Protesto

Sem atividades presenciais, por conta da Covid 19, o protesto assinado pelo Fórum Capixaba de Lutas Sociais e o Movimento Nacional de Direitos Humanos se resume a uma nota, divulgada por meio de redes sociais e encaminhada a lideranças políticas.

“As entidades signatárias desta nota, no seu compromisso ético-político de denunciar todas as formas de manifestação da violência, sobretudo aquelas cometidas pelo Estado, por ação, omissão, negligência e/ou cumplicidade, vêm a público resgatar a memória do período de sangue, dor e lágrimas, que jamais poderá ser esquecido: a greve da PM, em 2017”.

A nota prossegue e afirma que a “greve da Polícia Militar do ES é consequência de escolhas políticas equivocadas que insistiram e insistem no modelo anacrônico de segurança pública, patrimonial, punitivista, repressor, orientado pelo austeridade fiscal, base de um projeto político que vitima e mata pela condição social, cor da pele e local de moradia”.

Em outro trecho aponta diretamente o então governador Paulo Hartung, ao afirmar que “o governo de Hartung apertou ainda mais o cerco aos jovens pobres, pretos, instalando aqui a Força Nacional de Segurança (FNS), que serviu como resposta ainda mais violenta, ao invés da necessária construção de políticas públicas para encarar as profundas desigualdades sociais e todas as formas de privação e desamparo que produzem a violência”.

As entidades acrescentam que “o ambiente gerador da greve da PM teve início muito antes de sua deflagração”. A paralisação começou no dia 4 de fevereiro de 2017 e finalizou-se no dia 25, com aproximadamente 300 assassinatos, na sua maioria negros, homens da periferia com idade até 29 anos, informam.

“A violência sem precedente se estendeu ainda mais, quando o prefeito de Cariacica, Juninho (PPS), firmou convênio com a Força Nacional de Segurança, sob a tutela do então ministro da Justiça Sergio Moro. No cômputo geral, estima-se que os assassinatos originados na greve de 2017, perpetrados ou autorizados pelo governo e prefeituras, foram cerca de 400 ao longo do período que sucedeu à greve”. 

E enfatiza: “Famílias inteiras dilaceradas pelo sangue, dor e lágrimas, ante a perda precoce e violenta de seus entes queridos, que jamais tiveram do Estado o reconhecimento da dor, seu luto e tampouco reparação. Pelo contrário, o então governador Paulo Hartung apressou-se em compor força-tarefa para dar resposta rápida sobre os patrimônios lesados e não às famílias das quais vidas foram ceifadas”.

As entidades exigem a apuração, “com rigor investigativo e legalidade; imputação dos responsáveis e reparação às famílias das vítimas. Tanto Hartung, quanto o atual governador Casagrande, cuja administração é uma continuidade das práticas de seu antecessor no campo da dita segurança pública, assumiram uma postura verticalizada e indiferente às demandas populares”, criticam.

A nota aponta que nos “períodos posteriores à greve da PM, o Espírito Santo testemunhou com assombro os mandados de prisão coletiva nas comunidades periferizadas, como se ser pobre fosse um crime. Naturalizou-se ainda mais a criminalização da pobreza e a desresponsabilização do poder público”.

“Foi Casagrande que, como Hartung, não só deixou de se pronunciar perante as famílias, sem investigar um caso sequer, como também, aligeirada e irresponsavelmente, anistiou os policiais. São os mesmos governantes que jamais receberam os movimentos sociais, apesar das solicitações de reuniões e agendas com agentes públicos para que nos ouvissem no sentido de delinear políticas de reparação aos familiares dos assassinados durante esta greve”.

“A realidade atual e a manutenção das operações envolvendo a Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Penal e Guarda Municipal, valendo-se de brutalidade e truculência, arsenal bélico, invasão domiciliar e agressões cotidianas, afirmam que ainda vivemos no ambiente que nos levou ao infeliz e sofrido fevereiro de 2017, pontua a nota.

Reeleição

A greve da PM repercutiu em veículos de imprensa de circulação nacional e internacional e contribuiu para a desistência à reeleição do então governador Paulo Hartung (sem partido), em 2018, abrindo espaço para Renato Casagrande e deflagrando uma crise política que desmanchou o grupo ligado ao governo.

Os dois partidos mais afetados foram o PSDB e o MDB,  abandonados por Hartung, resultando na derrota eleitoral de vários aliados, entre eles o então senador Ricardo Ferraço, derrotado na reeleição, e o vice-governador, César Colnago, ambos do PSDB.

Sem resposta

À época da greve, a então procuradora-geral de Justiça em exercício do Ministério Público do Estado (MPES), Elda Spedo, instaurou um inquérito civil público para apurar eventuais responsabilidades do governo Hartung no movimento que culminou com a greve da Polícia Militar capixaba em fevereiro de 2017.

Conforme Portaria N. 003/2018, o inquérito apuraria “suposta omissão juridicamente relevante do núcleo político do senhor governador do Estado no episódio da greve da Polícia Militar, quais sejam” o senhor Paulo Hartung (governador), André Garcia (Ex-Secretário de Segurança), Laércio Oliveira (Ex-comandante geral da PM), Nylton Rodrigues (Ex-comandante geral da PM e atual secretário de segurança) e Carlos Marcelo D’Isep (Comandante Geral do Corpo de Bombeiros Militar). Não deu em nada.

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