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Nelson Rodrigues e seu folhetim definitivo Asfalto Selvagem

A convenção social é dinamitada com o desvelamento da hipocrisia

Divulgação

Nelson Rodrigues escreveu o romance Asfalto Selvagem como folhetim publicado periodicamente em jornal. Uma tragédia em moldes herdados do romance dostoievskiano, que aqui ganha os matizes das tramas folhetinescas. Asfalto Selvagem transita entre o popular e o sofisticado. Um dos subtítulos é Engraçadinha, seus amores e pecados, que até virou série na Globo nos anos 1990.

O romance folhetinesco Asfalto Selvagem possui uma estrutura dupla, dividido em dois livros diferentes, com uma primeira parte de uma linha narrativa principal, que se relaciona com a tragédia grega, e uma segunda parte que tem a dimensão própria de um romance, aqui tendo uma divisão entre tramas paralelas que se enredam e, por fim, que forma uma crônica do cotidiano.

O Livro I, intitulado Dos doze aos dezoito, começa com a narrativa sobre Dr.Arnaldo, em que aparece seu enterro, e que se trata de um pai suicida. Há um boato sobre incesto entre o pai e Engraçadinha, e que resulta numa gravidez. Aqui, há uma confissão que acontece desta com seu irmão Fidélis.

O enredo tem um núcleo principal, que não é o incesto entre pai e filha, mas, entre irmã e irmão. O destino cego envolve o incesto, um tabu em que o crime é cometido na mutilação e revelação, o crime expiado do pai, e toda uma trama incestuosa se desenvolve. A hipocrisia tem parentesco com peças como Álbum de Família, também de autoria de Nelson Rodrigues. O Livro I termina, por fim, num aspecto trágico.

O Livro II, Depois dos Trinta, tem um caráter cômico, Dr. Odorico como uma encarnação do próprio poder Judiciário, e que está asfixiado em meio a uma luta por redenção. Na narração, Engraçadinha, Durval e Luís Cláudio têm o aspecto de um triângulo amoroso, em que se dá, mais uma vez, o incesto.

A cena clássica da compra da geladeira por Dr.Odorico, ao cortejar Engraçadinha, em meio aos filhos dela, Silene, Leleco e Janet, culminando no assassinato de Cadelão, é uma tragicomédia que passa, ao fim, ao largo de Ésquilo e Dostoiévski. Leleco é um Raskólnikov folhetinesco, que mata Cadelão, e passa por dramas que alimentam o enredo típico de um folhetim.

Os clichês cômicos também são o combustível de Asfalto Selvagem. Nelson Rodrigues atua como o mestre do clichê e da frase feita, em que tais atributos se elevam a um gênero literário. Ele maneja tais atributos se tornando, com isto, um mestre do melodrama e do folhetim. Os acontecimentos são alimentados por escândalos, elevando os tons de cores quentes do folhetim e do melodrama.

As reviravoltas são exageradas para gerar o efeito do ridículo, em que o folhetim tem um enredo que sempre depende de acontecimentos extravagantes, com atores sociais representando verdadeiros clichês. Temos um desfile de pessoas clichês com apelidos clichês.

A convenção social é dinamitada com o desvelamento da hipocrisia, uma prática usual das peças e romances de Nelson Rodrigues, e a fixidez dos papéis sociais, nestes folhetins e melodramas, vai pelos ares em ações cada vez mais intrincadas e extravagantes. Os clichês e máximas são repetidos para revelar ideias insólitas e absurdas. O ridículo dos paradoxos esgarça e rompe com a lógica. Mas, o medo do ridículo, na trama rodriguiana, é reservado exclusivamente aos imbecis.

Nelson Rodrigues, ele mesmo o paradoxo entre o reacionário transgressor e o anjo pornográfico, usa todos os clichês possíveis a seu favor. No seu teatro desagradável, usa a máscara de tarado, e se dedica às crônicas a partir da década de 1960, em que ganha o papel de polemista.

A provocação do leitor é a arte de Nelson Rodrigues, que tem este trânsito em que vira mestre do melodrama e do folhetim e das crônicas jornalísticas. Asfalto Selvagem foi publicado em 1959, e já é uma inflexão no trabalho de Nelson Rodrigues, que cria a síntese entre suas duas frentes que representavam o teatro do desagradável e a provocação do leitor.

As características naturalistas, românticas, reunindo o popular e o erudito, são o caráter literário principal da trama rodriguiana, e aqui registra-se a tensão que se dá entre o conservadorismo e a transgressão, o moral e o imoral, estes no mesmo ambiente de hipocrisia. No título, Asfalto Selvagem, a evocação de uma trama extrema, em que os limites são testados à exaustão.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog:
http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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