Movimentos do campo e da cidade pedem mais políticas públicas para incentivar agricultura ecológica no Estado
No ano de 2021, o governo de Jair Bolsonaro (PL) liberou o uso no país de nada menos que novos 550 agrotóxicos, totalizando mais de 1,5 mil produtos do tipo autorizados em três anos de mandato. A notícia pode parecer estarrecedora e ir na contramão das necessidades humanas e do planeta, mas reflete uma realidade bastante consolidada no país, onde o estímulo ao uso de produtos químicos de impactos para a saúde humana e à natureza têm mais atenção do que uma produção saudável e ecológica.
‘A agroecologia ainda é tratada como via alternativa, quando deveria ser prioritária’, diz a arquiteta e técnica em agroecologia Nathalia Messina, integrante da Rede Urbana Capixaba de Agroecologia (Ruca). A frase não se refere apenas ao preocupante panorama nacional, mas também às políticas estaduais e municipais que ainda vacilam em inverter as prioridades políticas que deveriam ser adotadas no que se refere à agricultura.
Douglas Alvaristo, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), cita uma série de instrumentos que já foram criados como boas políticas públicas de fomento, embora muitas ainda patinam e careçam de falta de atenção do poder público. Entre elas estão a criação de uma política nacional e estadual, as leis de proteção a comunidades tradicionais e os serviços de assistência técnica públicos.
“É muito difícil tocar políticas sérias ainda que você tenha uma boa prefeitura, se não se tem uma unidade política estadual e nacional acontecendo”, questiona Nathalia, dando ênfase à situação federal em que imperam retrocesso sociais e ambientais e até negacionismo científico.
Ela pontua que, embora o agronegócio seja o foco político e econômico das sucessivas gestões na área da agricultura, há diversos estudos que mostram que a agroecologia não só é mais sustentável como traz maior abundância e soberania, além de maior poder das comunidades poderem decidir sobre o que plantam e o que vão comer.
“No cenário estadual a gente vê um pouco mais de ânimo para trabalhar com a agricultura familiar, orgânica e agroecológica. Há entusiasmo de um ou outro técnico ou servidor para fazer essas políticas acontecerem, mas é preciso mais do que isso. É necessário que haja vontade política dos governantes”, comenta Nathalia Messina.
Douglas enxerga como uma das principais referências a ser observada no Espírito Santo o Plano Estadual de Agroecologia e Produção Orgânica (Pleapo), instituído em dezembro de 2018, no último mês da gestão de Paulo Hartung. “Casagrande tem uma trajetória na cadeira de governador, mas não emplacou as atividades previstas no plano, está muito aquém. É preciso olhar para o Pleapo, pois elenca um conjunto de ações cujos debates envolveram órgãos do governo, entidades de ensino e a sociedade civil, definindo desafios para a agroecologia e com propostas de datas e processos para serem executados. Mas pouco se avançou até agora”, pontua.
Adelso Lima, membro da coordenação estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), entende que há um processo de hegemonia do agronegócio, ao mesmo tempo em que há um esvaziamento de políticas públicas para a agricultura familiar e camponesa e para a reforma agrária.
Para ele, no que tange à agricultura, é necessária uma série de políticas combinadas para garantir vidas dignas tanto no interior quanto na cidade. Uma delas são as compras governamentais, por meio de instrumentos como a Compra Direta de Alimentos (CDA), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).
Embora a lei aponte a necessidade de que no mínimo 30% das compras para a merenda escolar tenham origem na agricultura familiar, muitas vezes a mesma não é cumprida. E apesar da lei apontar um mínimo, o dirigente do MST acredita que é necessário avançar até que se possa chegar, inclusive, a 100% da merenda vinda da agricultura familiar. “Os municípios precisam estabelecer metas para ir gradativamente ampliando esse percentual, para garantir uma alimentação saudável”, considera.
Também aponta a importância de políticas como os restaurantes populares, que já existiram mas foram extintos em todos municípios em que atuaram no Espírito Santo. Por meio deles, além de contribuir para o combate à fome e oferta de dietas saudável para a população urbana, era permitida a compra de alimentos da agricultura familiar e da agroecologia, apoiando a população que produz no campo.
No mesmo sentido, o programa estadual AlimentarES criou as cestas verdes, inserindo alimentos frescos da agricultura familiar nas cestas básicas doadas a famílias em situação de vulnerabilidade durante o período de pandemia, política que os movimentos do campo acreditam que poderia ser transformada em permanente, já que a situação de vulnerabilidade tende a persistir mesmo se a pandemia for superada em breve.
Há ainda experiências municipais bem-sucedidas que Adelso entende que poderiam virar políticas estaduais, como é o caso do Vale Feira, já implementado em alguns municípios, seja para famílias em situação de vulnerabilidade, seja para servidores públicos, que recebem o benefício de auxílio alimentação para consumir nas feiras locais, o que o agricultor do MST entende que também favorece a educação alimentar e o consumo consciente. “As pessoas precisam exigir um alimento saudável e o Estado deve contribuir para fomentar isso”, ressalta.
Ele defende que essas políticas geram os chamados circuitos curtos, em que os alimentos não precisam percorrer milhares de quilômetros para chegar até o prato dos consumidores, o que gera impactos econômicos e ambientais positivos, otimizando a logística, reduzindo a poluição com transporte, e fazendo com que os recursos financeiros circulem dentro dos territórios próximos, o que fortalece a economia local.
Embora as compras da agricultura familiar tendam a favorecer por tabela a agroecologia, isso não é uma garantia direta. Ainda que a agroecologia tenha como base principal a produção familiar e em pequena escala, nem toda agricultura familiar é agroecológica ou em transição, já que muitas vezes o pequeno agricultor termina reproduzindo ou sendo refém da lógica do chamado “agronegocinho”, que reproduz em pequena escala práticas do agronegócio, como monocultivos e uso intensivo da terra e dos agrotóxicos.
Nesse sentido, Adelso aponta que para além das compras públicas que ajudam na garantia de venda e renda para os agricultores familiares, o Estado pode contribuir e incentivar o desenvolvimento da produção de alimentos saudáveis e de produção ecológica. Para ele, é necessário fazer com haja acesso a políticas com foco na produção, por meio da disponibilidade de recursos para investimentos e de assistência técnica adequada. No caso desta, ele entende que embora haja alguma política neste sentido, os órgãos responsáveis, como o Incaper a nível estadual, estão enxutos e possuem número insuficiente de profissionais, sendo que a maioria têm formação com base na agricultura convencional, e poucos são especializados em agroecologia, que exige outra dinâmica de trabalho e de diálogo com agricultores.
“A gente costuma dizer que a agroecologia exige uma tomada de decisão política, de ruptura com a ideia tradicional. A criação de políticas públicas precisa seguir essa perspectiva. Precisa trabalhar também questões como a água, as sementes, o meio ambiente como um todo. A crise ambiental está muito mais evidente, com extremos entre calor e frio e tempos muito mais curtos entre estiagens e enchentes”, alerta Adelso Lima, sobre a urgência de mudanças.
A importância de políticas estruturantes a nível federal e estadual é evidente para os entrevistados. Porém, os municípios podem cumprir um papel importante a partir delas ou mesmo para além, dando um passo à frente à morosidade e complexidade das políticas de alcance mais amplo. Uma sugestão de Adelso Lima, do MST, é a criação de viveiros para produção de mudas tanto para recomposição ambiental por meio da arborização e proteção de nascentes e matas ciliares, como para plantios agrícolas ou agroflorestais. O armazenamento de água da chuva por meio de cisternas e pequenas barragens também são alternativas relativamente simples e baratas para melhorar as condições de trabalho o campo.
“É preciso que o sistema de educação ambiental e incentivo seja primordial. Mais do que fortalecer políticas de punições e multas ambientais, é preciso oferecer orientação e educação para que a própria sociedade seja fiscalizadora desse processo para garantir a proteção ambiental”, acredita Adelso.
No meio urbano, outro desafio é o de fortalecer a produção de alimentos na própria cidade, o que se massificado pode se tornar uma política eficiente de combate à fome e garantia de segurança e soberania alimentar e nutricional, principalmente no fomento às hortas comunitárias, que além da produção de alimentos podem trazer outros benefícios como uso de espaços antes ociosos, fomento à articulação comunitária, educação ambiental, entre outros.
Apesar do tema ser crescente no debate público dos últimos anos, Nathalia, da Ruca, enxerga avanços tímidos no estado no apoio à agricultura urbana, que ocorrem principalmente a partir da organização e pressão da sociedade civil, mas ainda estão muito aquém de políticas implementadas em outros estados. Cita como exemplo positivo o treinamento de técnicos do Incaper com foco em apresentar experiências e conhecimento relacionados à agricultura urbana, que encontra vários casos de sucesso no Brasil.
“É importante a sociedade civil continuar pressionando, pois sem pressão dificilmente vão acontecer coisas concretas no âmbito da agroecologia urbana. Muitas vezes o movimento da população vem fazendo muito mais do que aquilo que o governo poderia estar fazendo”. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) vem realizando pesquisas e levantamentos que apontam diversas experiências de políticas públicas bem-sucedidas a nível municipal, fruto das campanhas Agroecologia nas Eleições e Agroecologia nos Municípios.
Com isso, as campanhas buscam evidenciar o que os diversos ativistas da agroecologia vem dizendo: é possível uma agricultura mais sustentável e há políticas concretas para isso. O que falta, acreditam, é vontade política e priorização, nos âmbitos municipal, estadual e federal.