Travesti e pessoas trans do Estado reviram o baú de memórias e narram suas lutas diárias contra a discriminação
O que é ser trans ou travesti em uma sociedade transfóbica? Em um contexto em que o assunto está ainda mais em voga, com a discriminação sofrida pela cantora, compositora, atriz, transformista e ativista social Linn da Quebrada, dentro e fora da casa do Big Brother Brasil (BBB); e com o recente Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais, celebrado em 29 de janeiro, Século Diário fez essa pergunta para uma travesti, uma mulher trans e um homem trans.
A cabeleireira e mulher trans Mel Correia Rosario foi a primeira a responder: “é viver engolindo seco muitas coisas, ter que levantar a cabeça e dizer ‘eu sou mais forte do que toda essa discriminação”. O agente de saúde Iuri Martins, um homem trans, afirma que, embora seja difícil por causa do preconceito vivido, é algo ‘libertador”. “É muito libertador levantar a cabeça e dizer que eu sou assim e ninguém vai tirar isso de mim. Olhar para o espelho e dizer ‘esse sou eu'”, afirma.
A cabeleireira Larissa Almeida, que é travesti, diz que “não é fácil, pois se não tiver uma profissão que possibilite ser autônomo, nunca vai conseguir um trabalho em uma empresa grande. Trabalho com carteira assinada é difícil. A gente, que tem o registro masculino e vestimenta feminina, eles não aceitam”, relata.
A história de cada um dos entrevistados é bem semelhante. Mel foi batizada com um nome masculino, o qual prefere não falar. Com o tempo escolheu ser chamada de Melissa e, posteriormente, trocou o nome masculino do registro de nascimento para Mel. “Mel vem de Melissa. Meu companheiro morreu, quis tentar esquecer, pois ele gostava muito do meu nome, e abreviei para Mel”, recorda.
A possibilidade de trocar de nome legalmente não veio de uma procura por parte dela, embora já tivesse pensado nisso. “A vida é tanta coisa para fazer, lutar, gastar dinheiro, que não busquei”, afirma. Mas, em uma audiência judicial motivada por agressões sofridas por parte de fiéis da igreja Assembleia de Deus Nova Aliança, o juiz propôs a alteração. “O juiz, para amenizar minha dor, propôs que eu mudasse meu nome para um feminino. Perguntou: ‘você quer?’. Eu disse: ‘claro que eu quero, excelência!”.
Entretanto, assim como os “brothers” utilizaram o pronome pessoal masculino “ele” para se referir a Linn da Quebrada, nem todo mundo chama a cabeleireira de Mel. “Tenho um irmão que até hoje só me chama pelo nome masculino”, diz. Esse irmão, conta, é da Assembleia de Deus. A mãe de Mel é Testemunha de Jeová, e a “aceita com ressalvas, por questões religiosas”.
Criada em família protestante, Mel se descobriu “uma menina no corpo de um menino” em tenra idade, “desde que se entende por gente”, e teve que conviver com o preconceito fomentado pela religião. “O discurso da igreja me trazia um vazio, por não me fazer compreender porque nasci assim. Enfim, somos obrigados a nos aceitar. O negro, por exemplo, é obrigado a aceitar que é negro. Ele vai arrancar a pele dele fora? Vai deixar de ser negro?”, questiona.
Embora a experiência com a igreja tenha sido difícil em sua infância e adolescência, Mel voltou para esse espaço décadas depois. Assim como no caso da mudança de nome no registro, a iniciativa desse retorno não partiu dela. A cabeleireira estava na padaria, quando uma “irmã” da igreja a abordou. “Ela disse ‘olha, Deus tem uma grande obra na sua vida, ele quer te libertar’. Me convidou para ir até a igreja e disse que ninguém iria me discriminar”, narra.
O convite foi aceito, e Mel, inclusive, foi buscada pela “irmã” quatro vezes, de carro, na porta da sua casa. Até que um dia a cabeleireira “aceitou Jesus”. “Aceitar Jesus é, diante das pessoas, expressar em palavras que realmente aceita que Jesus é o Messias, filho de Deus, nosso advogado. Quando a pessoa aceita isso, passa a fazer parte do corpo de Cristo”, explica. Porém, isso trouxe problemas para Mel, pois a igreja passou a exigir que cortasse seus cabelos, que são cumpridos, e vestisse roupas masculinas.
“Não fiz isso. Continuei firme na igreja, sentindo a presença de Deus, a ponto de falar línguas estranhas. Eles [os fiéis] sentiram um ódio mortal. Disseram que era o demônio, e não o Espírito Santo. Aí os pastores me rodearam dizendo ‘Sai, Demônio! Sai, Satanás!’, mas não saiu de mim, pois não era o Demônio, era o Espírito Santo. Estavam expulsando a coisa errada”, conta.
Posteriormente, Mel foi expulsa do templo, do qual disseram que se ela não “saísse por bem, iria sair por mal”. “Me seguraram e foram me levando pelo braço. Caí no chão e foram me arrastando até a calçada”, diz. A violência sofrida culminou na audiência em que o juiz propôs a troca de seu nome. O magistrado também estabeleceu que ela deveria receber uma multa no valor de R$ 100 mil, da qual Mel abriu mão, pois um dos argumentos contra ela era de que a agressão não tinha ocorrido e que seu objetivo era somente ganhar dinheiro.
Outra determinação judicial foi de que ela não poderia ser impedida de adentrar o templo, o que não foi cumprido, pois a esposa de um pastor, ao vê-la na igreja, mandou que ela se retirasse e, mais uma vez, a cabeleireira foi agredida e, até mesmo, ameaçada de morte por um presbítero. Desde então, em alguns dias da semana, quando há culto, ela fica na porta da igreja com um cartaz em protesto contra a transfobia.
“Como eu ia viver na hipocrisia? Eu ia cortar meu cabelo, usar roupa de homem para continuar na igreja, fingindo que sou homem? Não queria isso. Pensei: vou continuar na igreja como mulher trans, usando meu vestido. Se Deus quiser me fazer ser homem, eu aceito, mas se ele não fizer, é porque me ama independentemente de qualquer coisa. E ele não fez”, conclui.
Sua história é relatada em um longa-metragem, o Toda noite estarei lá, dirigido por Tati Franklin e Suellen Vasconcelos, com produção de Thiago Moulin. A relação de Mel com as câmeras começa quando Thiago Moulin a incluiu como uma das personagens do telefilme Impressões Urbanas, lançado em 2017. A força de Mel e sua história o levaram a conduzir uma produção exclusiva sobre ela, culminando no curta-metragem de mesmo nome,
Toda noite estarei lá.
‘Você é mulher, não tem negócio no meio das pernas’
Iuri, que assim como Mel prefere não revelar o nome que recebeu da família ao nascer, passa por outra situação semelhante: a não aceitação de seu nome masculino por parte de algumas pessoas. Por isso, teve que se afastar de muitas delas. “Chego e digo: ‘meu nome é Iuri, sou um homem trans. Aí alguns dizem: ‘você é mulher, você não tem negócio no meio das pernas. Eu te conheci assim e vai ser assim'”, diz, destacando ainda que, além de não o chamarem de Iuri, não permitem que ele se apresente dessa forma, corrigindo-o na frente dos outros.
Iuri conheceu o universo da transexualidade por meio da novela global A Força do Querer, na qual a atriz Carol Duarte, que interpretava a personagem Ivana, passou a se chamar Ivan após o processo de transição. “Comecei a pesquisar sobre o assunto, pois assim como a personagem, me olhava no espelho e não me via como menina”, recorda.
A questão da religião também perpassa sua história. De família protestante, ele encontrou acolhida por parte da mãe, “que respeita e o defende”; por parte do padrasto, que inclusive o ajudou comprando uma faixa para esconder os seios, que o incomodavam; e pelo irmão, que por ser da igreja “não aceita, mas respeita”, chegando a defendê-lo da transfobia. Com o pai, o qual classifica como machista e homofóbico, Iuri não tem contato.
Embora não encontre grandes dificuldades no meio familiar, fora dele as coisas são diferentes. ‘É difícil, complicado, um desafio a cada dia”, lamenta, recordando um momento em que quase foi agredido dentro do ônibus. Ele foi enviar uma mensagem de áudio pelo WhatsApp, quando um homem, ao perceber que sua voz era feminina, começou a fazer piada e se aproximar de maneira ameaçadora. A solução que Iuri encontrou foi descer do ônibus e pegar outro.
O preconceito também o impediu de concluir o ensino médio, antes mesmo de passar pela transição. Ele recorda que, certa vez, a coordenadora da escola o avistou saindo do banheiro feminino da escola com uma colega. “Ela falou que eu estava no banheiro ‘pegando’ a menina, pois eu tinha um andar masculinizado. Ela tentou pegar nos meus seios para verificar se de fato eu era mulher. Eu levantei, fui para a sala de aula, mas me retiraram de lá. Depois a coordenadora disse que se alguém fosse preconceituoso comigo, era só avisar para ela, aí eu disse: ‘você foi preconceituosa, você, com seu comportamento, incentiva o preconceito”, relata Iuri.
Foi exatamente isso que aconteceu. Depois dessa atitude da coordenadora, alguns estudantes passaram a agredir Iuri fisicamente. “Até hoje não tenho coragem de voltar para a escola. Quero retornar, mas tenho medo de voltar a acontecer isso”, desabafa.
Além do ensino médio incompleto, a não mudança do nome de registro em seus documentos contribui para que Iuri tenha dificuldade de arranjar emprego.
Atualmente, ele trabalha como agente de saúde na Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade (Gold), realizando testes de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e hepatite para públicos como os da comunidade LGBTQ+ e a população em situação de rua.
‘Fui para o carnaval e tirei a máscara de homem’
A cabeleireira Larissa Almeida, que também não quis revelar seu nome de registro, começou a se vestir como mulher aos 15 anos. “Aproveitei o carnaval e nunca mais troquei de corpo. As pessoas colocam a máscara e vão para o carnaval. Eu fui para o carnaval e tirei a máscara de homem”, recorda.
Criada pela avó, da Assembleia de Deus, Larissa, que hoje é umbandista e se sente acolhida por essa religião, afirma que, quando criança, ao ser levada para a igreja, chegava a dormir no local, que não a atraia. Ela tem seis irmãos, sendo duas mulheres e quatro homens. Um dos irmãos, motivado por questões religiosas, chegou a agredi-la fisicamente na infância.
“Me assumi com 15 anos, mas algumas pessoas já desconfiavam. Nunca tive jeito para macho. Tinha um comportamento considerado feminino. Gostava de brincar de boneca, de casinha, de comidinha”, rememora.
Assim como Iuri, o preconceito a impediu de estudar, tendo cursado até a quinta série, pois aos 10 anos começou a trabalhar, vislumbrando antecipar sua independência financeira, podendo sair de casa, o que aconteceu aos 20 anos. Primeiramente, atuou como faxineira e lavando carros. Aos 18 anos, fez curso de cabeleireira, profissão que tem exercido com dificuldade por causa da pandemia da Covid-19, que reduziu o número de clientes.
Larissa encontra suporte na Associação Gold, que realiza ações como distribuição de cestas básicas para pessoas trans e travestis. “Ajuda muito, pois além da redução dos clientes, vivemos um momento em que as coisas estão cada vez mais caras”, diz. Em relação ao mercado de trabalho, ela acredita que é preciso dar oportunidades para travestis e pessoas trans. “É preciso abrir portas independentemente dessas questões. Tem muitos trans e travestis de caráter, boa índole, força de vontade para trabalhar”, destaca.
Assassinatos
Em 2021, pelo menos três pessoas trans e travestis foram assassinadas no Espírito Santo. Os dados são do dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), lançado oficialmente em 28 de janeiro, em Brasília, com dados de todo o Brasil. Presente no encontro, a ativista capixaba Déborah Sabará, coordenadora de Ações e Projetos da Associação Gold, aponta para a subnotificação dos casos e a necessidade de políticas públicas de referência no Estado.
Tomaz Silva/Agência Brasil
No dossiê, o Espírito Santo aparece em 13º lugar no ranking de estados com mais registros. Os dados repetem o número de assassinatos notificados em 2020, quando também foram observados três casos. Em primeiro lugar está São Paulo, com 25 notificações. Deborah acredita que os números estão subnotificados. No Espírito Santo, a Gold é responsável por repassar os casos de assassinatos para a Antra, com informações sobre idade e profissão das vítimas.
O registro é feito com base em matérias jornalísticas, relatos e pesquisas, mas a estrutura para a realização das notificações ainda é limitada. “É difícil monitorar as regiões noroeste, norte, sul e região das montanhas, por exemplo. As informações às vezes ficam mais na Grande Vitória”, explica.
Em todo o Brasil, pelo menos 140 assassinatos de pessoas trans foram registrados em 2021, sendo 135 travestis e mulheres transexuais, e cinco casos de homens trans e pessoas transmasculinas. Apesar da diminuição dos números em relação a 2020, quando 175 assassinatos foram observados, o Brasil se manteve como o país que mais assassina pessoas trans do mundo.
“Isso não se reflete exatamente em uma queda na violência ou no número dos assassinatos contra pessoas trans em geral, visto que em 2021 o Brasil seguiu sem qualquer ação do Estado para enfrentar a violência transfóbica; permaneceu como o que mais assassina pessoas trans do mundo pelo 13º ano consecutivo (ONG Transgender Europe/2021)”, informa um trecho do dossiê.
O que se vê, pelo contrário, é a institucionalização da transfobia e a ausência de dados nas unidades federativas. “Queremos, também, afirmar que, mesmo diante de um cenário controverso e violento, as conquistas que temos alcançado têm sido frutos da luta dos movimentos da sociedade civil organizada”, enfatiza o relatório.
Políticas públicas de referência
O esforço de diversas entidades que atuam na defesa da população trans no Brasil é para romper com o projeto de invisibilização da transfobia em curso no país. No Espírito Santo, uma das reivindicações é a instituição de uma delegacia referência para a população LGBTQIA+, um local para denúncia efetiva dos casos.
A Gold faz o acolhimento de casos informados, mas o encaminhamento das vítimas requer um espaço seguro, em que a população possa ser ouvida efetivamente. “Já que a gente criminalizou a homofobia, onde buscar? Esse lugar para a gente indicar precisa ser sensível, que entenda, que respeite e que acolha também. Que reconheça que essa violação de direitos é homofóbica”, aponta Deborah.
A invisibilização está presente até no registro dos crimes. Deborah Sabará critica a dificuldade de inclusão da violência contra travestis na categoria de crimes contra a mulher. “O Estado tem colocado esses casos na delegacia de homicídios contra homens. Isso é um absurdo”, declara.
Deborah Sabará. Foto: Divulgação
Outra reivindicação é a construção de políticas públicas e fomento a entidades que atuam na defesa do público LGBTQIA+ no Espírito Santo. “A Gold tem algumas propostas, mas faltam investimentos de projetos que a gente possa executar, no mínimo, em três anos. A gente recebe recursos às vezes pra projetos que são de quatro, cinco, seis meses ou um ano. E isso é muito difícil, porque a gente faz uma política e depois você acaba dizendo para a população: ‘olha, acabou’, ‘o atendimento psicológico acabou’, ‘o atendimento da assistente social acabou”, exemplifica.