[Podcast] Ativista do Morro da Piedade, Jocelino Júnior fala sobre violência, políticas públicas, samba e combate ao racismo
Professor, pedagogo, servidor público e sambista, Jocelino Júnior, 30 anos, é um jovem ativo em diversas causas, como movimento negro, direitos humanos e cultura. É fundador do Instituto Raízes e atua também na política partidária, tendo sido um dos dez vereadores mais votados nas últimas eleições de Vitória, apesar de não ter sido eleito.
Conversamos com ele no podcast Século Diário Entrevista, que pode ser ouvido em áudio no player abaixo ou na sua plataforma favorita de distribuição, como Spotify ou Anchor, que disponibilizam, também, todas as edições já realizadas, com diversos convidados.
Para começar, você que cresceu no Morro da Piedade, queria que comentasse um pouco da sua relação com o samba, já que a Unidos da Piedade é a primeira escola de samba capixaba, uma das mais tradicionais do Espírito Santo.
A minha família é de sambistas. Meu avô foi um dos fundadores da Unidos da Piedade, contribuindo com os primeiros instrumentos da escola de samba. Ele tinha um talento para essa elaboração, para marcenaria. Ele e seu Aloísio Paru criaram os primeiros instrumentos da escola, tambores, surdos, batuques.
Essa tradição vem sendo intergeracional e da nossa ancestralidade mesmo. A partir disso, meu pai se envolveu demais com a escola, é um apaixonado por carnaval de escola de samba. Eu também me apaixonei e, até os dias atuais, estou muito envolvido. Já fui mestre-sala da Piedade, hoje sou mestre-sala aposentado, costumo dizer, mas atuo no carnaval agora ajudando na diretoria da liga das escolas de samba. Temos o trabalho de repensar algumas questões do carnaval e colocar nossas comunidades como protagonistas do desfile das escolas de samba, como sempre foi e como a gente precisa sempre valorizar.
Recentemente, tem havido muitos debates em relação aos desfiles das escolas de samba diante da atual situação sanitária com a pandemia de Covid-19. É uma questão complexa, envolve saúde, cultura, economia, as comunidades. O que você considera uma saída razoável nessa atual situação?
Nós temos um debate sobre o carnaval muito importante. A gente está numa situação adversa, num processo muito difícil, que é a questão da pandemia. Temos que ter protocolos para todos processos de aglomeração, para todas situações, que vão envolver pessoas que precisam ter toda uma estrutura. Evidentemente, as escolas de samba são oriundas da classe popular, dos territórios periféricos. Historicamente, o carnaval e o desfile das escolas de samba são carregados nas costas de muitas famílias negras, de personagens negros das grandes cidades que têm carnaval, porque é uma manifestação afro, o samba vem da África, vem desse ressoar dos tambores africanos.
Com isso, temos uma grande questão a se pensar, como fazer os desfiles das escolas de samba nesse período de pandemia. Possibilidades já foram avistadas no sentido dos protocolos de segurança, de testagens, com exames PCR, vacinação. A gente tem um caminho a ser enfrentado até abril, que agora é a nova data dos desfiles das escolas de samba em Vitória, para pensar novas estratégias de conseguir fazer um desfile seguro e fazer com que as escolas de samba se sintam pertencentes desse processo e, sobretudo, valorizando os artistas das comunidades. Acho que este é nosso maior desafio. Precisamos pensar como fazer isso nesse momento em que a gente está em situação de pandemia ainda muito acirrada, vendo todos os dias os casos. Temos trabalhado para encontrar saídas saudáveis e seguras para os desfiles das escolas de samba.
A gente tem um dado que, infelizmente, marca a história da Piedade de forma muito brutal, com marcas de sangue, com vidas da juventude ceifadas. Se fizermos um levantamento de trás para frente, de hoje ao primeiro dia do caso mais brutal, que foi a morte dos irmãos Ruan e Damião, vamos somar 16 mortes de jovens dentro desse território chamado de Território do Samba, que inclui os morros da Piedade, Fonte Grande, Capixaba e Moscoso. Mortes de jovens entre 15 e 29 anos, como nas estatísticas do Atlas da Violência e do Mapa da Morte da Juventude no Brasil. Esses dados confrontam diretamente com a ausência de políticas para essa população de jovens negros, moradores de bairros periféricos.
Nossa cobrança maior ao governo do Estado e à prefeitura era e continua sendo em defesa de que nossas populações precisam ser atendidas por políticas públicas. Temos um diferencial de que nossas cobranças saem do que o Estado está acostumado que aconteça quando tem mortes nos territórios, que é de fechar ruas, danificar ônibus, toque de recolher em que as pessoas não circulam.
Nossa mobilização é extremamente diferente, havendo situações em que há mortes no território, o primeiro passo nosso é envolver os equipamentos públicos dentro do território. A primeira ação que a gente toma é que esses equipamentos não podem fechar por conta das mortes que aconteceram no território. Porque as pessoas não fecharam suas vidas, elas perderam entes queridos, mas não deixam de trabalhar e não deixam de descer o morro. Por que o serviço público vai fechar quando a comunidade precisa do equipamento? Ou seja, precisa da escola aberta, do CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] funcionando, da unidade de saúde realizando visitas.
Nós nos mobilizamos de forma comunitária, fazendo com que as pessoas compreendam que é necessário provocar o poder público com respostas que sejam significativas para a vida e o território delas. Uma coisa que fizemos foi um plano de ação com 15 ações comunitárias, sociais e coletivas sugeridas aos governos estadual e municipal. Ações que vão complementar, implementar e dar sensação de segurança e atenção social para a comunidade.
Penso que, no Espírito Santo, os governantes têm a chance de fazer o maior projeto piloto de transformação de um território, que é pequeno e cultural, que tem bastante juventude, e que se investisse nesse lugar como projeto piloto de transformação social da realidade dos moradores, com certeza teríamos efeitos muito melhores e não chegaríamos a essas 16 mortes.
Nesse processo, tivemos na Piedade entre 46% e 48% de diminuição da população local. É um número muito grande e assustador. Eram 500 pessoas e hoje não chegam nem a 250 pessoas morando no local, sem contar que você roda no território sem achar uma pessoa na rua. É muito difícil. Não tem gente, as pessoas têm medo. Houve ali uma instalação de uma pandemia de violência antes da pandemia do coronavírus, em que as pessoas não saem de casa, não são felizes, não têm atendimento digno de políticas públicas. Isso estamos cobrando constantemente, e vamos continuar cobrando.
Você falou do Plano 15 construído pela comunidade, quais os principais pontos que destacaria?
Uma das coisas que o plano pede é o mapeamento dos moradores que permanecem no território. Fazer um levantamento de quantos permanecem é importante, porque o Censo não foi realizado, está há dois anos sem realizar, e com expectativa de não acontecer novamente. Então a gente precisa de ter informações de quem mora na Piedade, Fonte Grande, quantas famílias, qual o percentual. Esse é um dos pedidos do Plano 15.
Outro é o fortalecimento das atividades e lideranças comunitárias positivas. De valorização do governo dessas ações de esporte, capoeira, teatro, dança, ações religiosas. O Estado e a prefeitura podem apoiar esses coletivos que trazem vitalidade ao território, fazendo com que nossas crianças e jovens participem de alguma maneira de atividades sociais e coletivas que vão dar desdobramentos positivos.
Pedimos ainda a implementação de serviços mais efetivos, ou seja, a unidade de saúde estar mais próxima do território, a escola estar mais próxima do território, atendendo nossas famílias com vagas escolares. Diversos pontos do Plano de Ação 15 vão reforçar o desejo de um território melhor para se morar.
Em relação a uma outra política de segurança, que você tem defendido, no que consiste?
Nossa intenção é repensar a política de segurança, a gente vai falar sempre que políticas de segurança não se fazem somente com instalação de base da Polícia Militar, não se faz somente com ronda das polícias Civil e Militar nos territórios periféricos. Mas se faz com a unidade de saúde circulando para visitar as casas, o CRAS tendo condição de atender as demandas específicas de necessidades básicas das famílias na área da assistência social, e de ter escolas atendendo nossas crianças em período integral, com condições de acolher efetivamente, com material, valorização do professor, do espaço escolar, com reformas e ampliações.
Existem diversas situações de políticas públicas, e por isso gostamos de falar no Instituto Raízes de articulação em rede, porque é essa articulação em rede, esses serviços entrosados, fortalecendo vínculos das comunidades, que vão dar efeito para política de segurança, porque só a polícia em si não vai resolver.
Uma mulher com autonomia, com acesso a serviços públicos, trabalho, emprego e renda, tem menos chances de sofrer violência doméstica. Um homem que está em processo de agredir sua companheira, que faz uso abusivo de álcool, se não tem emprego, não vai ao médico, não tem oportunidades, está propício a promover mais situações de violência, de violação dos direitos de sua companheira e outras situações que vão o deixar vulnerável e que pode também vulnerabilizar a vida de outras pessoas.
Estamos falando de uma série de ações que vão dar oportunidades para pessoas de territórios que não são vistos. No caso da Piedade, esse território só é visto pela sociedade capixaba em geral quando a Unidos da Piedade arrebenta e faz a descida da Rua Sete ou quando as mortes acontecem no morro.
Você também tem trabalhado, recentemente, na coordenação do Museu Capixaba do Negro, o Mucane, que é um equipamento público do município de Vitória. Qual a importância desse equipamento e os planos de gestão nesse espaço?
Estamos fazendo um trabalho de valorização da cultura afrobrasileira, reconhecendo o Mucane como espaço da população negra, da população capixaba, um espaço construído pelos movimentos sociais, o que não pode se perder de vista e nem deixar ser reduzido pela ocupação dependente de governos que passam. Vão passar governos e o Mucane vai permanecer, precisa estar apoiado pelos movimentos sociais e não reduzido a uma questão política, somente. Senão o Mucane pode se transformar no que virou a Fundação Palmares, isso não podemos deixar acontecer.
É um espaço extremamente rico, que pode ser utilizado por toda galera, pelo movimento negro, as portas sempre estiveram e estão abertas para acolher e fazer as demandas do povo negro. Aqui dentro do espaço tem auditório, sala de dança, biblioteca, hall para eventos e coquetéis. Um espaço que temos que valorizar e assumir como nosso, porque se deixamos que qualquer pessoa cuide e faça gestão de qualquer maneira, vamos ter um novo Sérgio Camargo e um nova Fundação Palmares no Espírito Santo.
Ocupar esse espaço é um processo de resistência. Fazer com que a dinâmica aconteça de maneira saudável, que haja investimento, que tenha profissionais, porque só ter um museu aberto sem profissionais, sem atividades, sem nenhuma atração, seria um museu que não estaria dialogando com seus preceitos.
O Mucane tem decretos de criação que falam em questões de trabalho que trazem consigo diversas situações que vêm de encontro à valorização de nossa história, da cultura brasileira, da população negra do Brasil. Não se pode deixar que seja reduzido a uma política partidária e se perca esse espaço que é muito potente. Precisamos trazer as escolas para esse museu, as comunidades. Fazer com que esse espaço se fortaleça cada vez mais, se autoafirme enquanto espaço de resistência, de valorização cultura afro, como a casa dos movimentos sociais e negros.
O Mucane tem que ser respeitado, pois foi o primeiro museu negro criado no Brasil, no final dos anos 80 e início dos 90, antes mesmo do Museu Afro em São Paulo, que tem maior amplitude e tamanho. Mas o Mucane foi o primeiro e tem personagens históricos como Verônica da Pas, que dá nome ao museu, que fizeram com que esse espaço fizesse sentido e existisse. Temos que abraçar o Mucane e vir para dentro, fazer política de construção de autoafirmação da população negra nesse espaço, que é colocado como de convergência dos direitos da população negra.
Falando da política eleitoral, você foi candidato a vereador de Vitória, quase foi eleito, ficando 20 votos atrás da Karla Coser, que foi eleita na chapa do PT. Como foi essa experiência de construir uma candidatura? Tem planos de novas candidaturas, inclusive em 2022?
A candidatura foi coletiva, o resultado mostra que fizemos um trabalho incrível, com muita dificuldade, porque fazer campanha política não é fácil. Precisa de recursos financeiros, não necessariamente muito dinheiro, mas de alguma base. Não se faz campanha sem se alimentar, se deslocar, sem ter um panfleto, precisa de um fundo, principalmente para a logística da candidatura. Nosso trabalho foi com pouco recurso, mas não descansamos nenhum dia a campanha, de manhã, tarde, noite, e até madrugada quando possível, dialogando, mostrando as possibilidades.
Dialogamos com pessoas simples, que são minha base. E pessoas que têm conhecimento, que têm o privilégio da intelectualidade, e nos conhecem por conta de nossos posicionamentos, que não mudaram.
A gente tem trabalho de base e isso foi porta de entrada para que várias pessoas acolhessem a candidatura. Estamos avaliando como participar do processo eleitoral em 2022. No momento não temos uma definição fechada, temos que discutir partidariamente como ficaria a coligação, as federações partidárias, as chapas proporcionais. Os diálogos do PT avançam, mas eu, particularmente, não tenho a mesma pressa do PT, embora seja do partido. Acho que o PT vai fazer uma boa campanha para presidente, eleger o Lula é uma prioridade, vamos atuar firmemente com esse projeto.
Sobre 2020, nosso segredo maior foi fazer uma campanha bem popular, com linguagem popular. Não considero que perdemos a eleição ou perdemos tempo com ela. Pelo contrário, fortalecemos a ideia de um projeto político para ter uma câmara representativa, a ideia de discussão política para pensar a partir dos territórios vulneráveis.
Hoje vemos espaços representativos distantes do povo. Pessoas que ocupam esses espaços foram eleitas legitimamente, mas as ideias, vivências e experiências são diferentes, e isso precisa ser colocado de maneira com que nossa população enxergue quais projetos elas querem para a vida delas, que vão dar retorno para a vida delas e para a transformação social.
Acho que a gente tinha isso bem desenhado em nosso cronograma de trabalho e em nossas propostas. Hoje, sobre 2022, não posso afirmar nada, mas para 2024 estamos nos preparando para fazer uma pré-candidatura para vereador novamente, buscando apoios necessários. A gente tem muito orgulho do resultado que tivemos e somos respeitados por isso, tanto pela oposição como pelos colegas da esquerda. Graças a Deus, a gente sabe chegar em qualquer lugar, conversar, dialogar, fazer com que nossas demandas sejam escutadas, que nossa população seja respeitada, que nossas comunidades tenham serviços públicos de qualidade.
Para concluir, gostaria de deixar uma mensagem final?
A mensagem final que eu deixo é de que nós precisamos ter representações políticas que de fato defendam interesses coletivos e das pessoas, precisamos ter referências nesses espaços, fazer com que a política seja enxergada pela nossa juventude, pela população negra, como espaço realmente de mudança. As câmaras, assembleias, Senado, são espaços importantes para desenvolvimento dessas políticas, para fazer a legislação e a fiscalização dessas políticas públicas e sociais. São espaços para a defesa dos interesses do povo. A política, na minha opinião, é fundamental, não é eixo complementar, é a política que está definindo muitas estratégias equivocadas que estão sendo colocadas em prática no Brasil.
Outro enfrentamento importantíssimo a ser realizado é o enfrentamento ao racismo nesses espaços, à violência contra as mulheres que representam nossas políticas. Nossas mulheres são silenciadas nesses espaços de poder, não podem falar, são agredidas, tratadas com deboche, como é o caso das companheiras Karla [Coser, vereadora de Vitória pelo PT], Camila [Valadão, vereadora de Vitória pelo Psol] e Iriny Lopes [deputada estadual pelo PT], por quem tenho muito respeito e admiração.
Temos representações que precisam ser respeitadas, mas isso tudo está se colocando também por conta de questões trazidas do plano nacional, em que a principal figura política do país não respeita jornalistas, não respeita as divergências, não respeita a saúde.