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Furar ‘pacto da branquitude’ não é fácil, diz gestora de núcleo afro-brasileiro

Jacyara Paiva: cotas na graduação não garantem justiça racial. MPF vê ilegalidades em editais para trabalhadores

O sistema de cotas para negros nos cursos de graduação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) é um “divisor de águas”, mas apenas o começo da construção da igualdade racial. A percepção é da professora do Centro de Educação e coordenadora do Núcleos de Estudos Afro-brasileiros (Neab) da Ufes, Jacyara Silva de Paiva. 

“Eu vivi o antes, quando nós não tínhamos visibilidade nenhuma. E depois, um cenário diferente, como professora e presidente da comissão de cotas. Mas ainda temos um longo caminho e grandes desafios para avançar. No âmbito da graduação, da pós-graduação e da docência”, afirma, ressaltando que as cotas chegaram à universidade capixaba após mais de três décadas de tensionamento, por parte do movimento negro. 

Nesse primeiro estágio, lembra, é possível que a Ufes tenha alcançado metade de estudantes negros, mas com grande maioria ainda de pardos. “Os pretos ainda não chegam no número que deveriam chegar”, compara, ressaltando que “no Brasil, o racismo é de marca, porque está nas características fenotípicas”, o que explica porque as pessoas negras de pele preta sofrem ainda mais preconceito do que as de pele parda. 

Nos cursos considerados mais nobres, como Medicina, Odontologia e Direito, a presença negra é ainda mais reduzida. “Eles sequer se candidatam às vagas pelo sistema de cotas”, conta Jacyara, a partir da sua experiência como presidente da Comissão de Verificação de Autodeclaração das cotas raciais da Ufes. 

E o acesso à faculdade, reforça, é só um passo. “É preciso garantir a permanência desse aluno. São alunos que necessitam de uma bolsa de estudo”, defende. Geralmente vindos de origens humildes, estão numa idade em que precisam trabalhar para ajudar no orçamento familiar. Sem uma bolsa de estudos, expõe, a vivência universitária fica prejudicada, pois não podem fazer estágios, participar de seminários, congressos…”Não é só se formar”, sublinha. 

Para além da graduação, o funil racial se estreita com mais gravidade. Na pós-graduação, as cotas não são uma exigência. “A Ufes apenas deu autorização, no ano passado, para que os programa de pós-graduação criem sistemas de cotas, não é obrigatório. Na docência [professores], nem isso”, informa.

Na docência, especificamente, explica Jacyara, o que ocorre é a pulverização das vagas em vários pequenos processos seletivos, fazendo com que alguns ofertem menos de duas vagas, o que inviabiliza a aplicação da lei de cotas, que é exigida em editais acima de duas vagas. 

‘Pacto da branquitude’

“Não temos professores, não temos alunos de mestrado e doutorado, não estamos nos espaços de poder. As bancas [de avaliação de trabalhos finais de alunos] e as comissões [de cotas] são brancas. São espaços de poder que contam com o pacto da branquitude. E para furar isso, não é fácil. E se não ocupamos os espaços de poder, não conseguimos mudar a universidade”, atesta a acadêmica.

Embasando sua crítica, estão alguns números. “Noventa por cento dos nossos professores universitários são brancos e as mulheres negras são apenas 3% nas universidades”, exemplifica, mostrando a invisibilidade desse grupo social da qual ela faz parte, e dentro de um estado, o Espírito Santo, que tem “60% da população negra”, compara. 

As ações afirmativas via políticas de cotas, sozinhas, prossegue a coordenadora do Neab, não combatem o racismo estrutural. “São importantes, mas convém lembrar que elas não tocam na base do sistema. No mesmo momento histórico em que as políticas de igualdade mais cresceram, foi quando a o encarceramento da população negra mais cresceu”.

MPF aponta ilegalidades 

Na última quinta-feira (10), o Ministério Público Federal no Espírito Santo (MPF/ES) oficiou o reitor da Ufes, Paulo Vargas, sobre um conjunto de quatro editais publicados em novembro de 2021, com suspeita desse tipo de irregularidade, segundo uma representação feita à procuradoria capixaba do órgão ministerial (Notícia de Fato nº 1.17.000.000063/2022-27).

“O MPF quer que a Universidade esclareça o motivo pelo qual optou-se pela publicação de quatro editais diversos, com distribuição de vagas por meio de área/subárea, e qual o fundamento jurídico e/ou político para tal, considerando que, apesar de serem destinadas a centros/departamentos diversos, trata-se de provimento para cargo único: professor do magistério superior do quadro permanente”, afirma o MPF/ES.

O órgão cita uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto, que afirma ser ilegal esse fracionamento de vagas: “os concursos não podem fracionar as vagas de acordo com a especialização exigida para burlar a política de ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas vagas”.

Outro ofício do MPF sobre cotas na semana passada refere-se ao edital nº 70/2021, para preenchimento de vagas de técnicos administrativos, por conter uma cláusula ilegal, que elimina do concurso os candidatos reprovados pela Comissão de Heteroidentificação.

“O MPF quer que a Ufes altere imediatamente esse item do edital, permitindo que candidatos reprovados perante a Comissão de Heteroidentificação sejam alocados na lista de ampla concorrência do concurso, exceto em caso de falsidade deliberada”.

Assinada pela procuradora regional dos Direitos do Cidadão Elisandra de Oliveira Olímpio – inquérito civil nº 1.17.000.000145/2022-71 – a recomendação estabeleceu prazo de cinco dias para manifestação.

A Ufes apontou que a resposta será encaminhada ao órgão nesta terça-feira (15), informando que a retificação do edital foi publicada em 7 de fevereiro, no Diário Oficial da União. 

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