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Por que é problemática a ‘militarização’ das Guardas Municipais?

Entenda como prefeitos vêm criando grupos táticos aos moldes da PM, desvirtuando as funções legais atribuídas às guardas

Vídeos feitos por populares na madrugada de 13 de fevereiro mostram uma cena não muito estranha, especialmente para quem mora nas periferias brasileiras. Uma polícia fortemente armada, alguns com rosto semicoberto, jovens negros com mãos e braços estendidos de frente para o muro, um deles colocado no chão e sendo algemado. O que impressionou alguns é que a ação não era da Polícia Militar, mas da Guarda Municipal de Vitória, com seu novo grupo tático, a Ronda Ostensiva Municipal, a Romu, que tem cores, armamentos e ações que podem levar o cidadão que observa de longe a confundi-la com a PM, ou até mesmo com o exército.

Não é mero acaso, e sim fruto de uma estratégia que cresce no Espírito Santo mas faz parte de um fenômeno nacional, que causa polêmica. Cada vez mais os prefeitos vêm utilizando as guardas municipais, que são civis e atendem a uma legislação específica, para um uso que perigosamente transita nos limites de sua atuação legal. Ao invés do caráter comunitário, vêm ganhando destaque as ações repressivas, geralmente cercadas de fotografias de prisões e apreensões e um discurso de tolerância zero com o crime, em busca de capitalizar a nível municipal esse sentimento que tem um grande apoio popular.

Criada na gestão de Lorenzo Pazolini (Republicanos), a Romu formou sua primeira turma em julho de 2021, com 21 policiais no grupamento tático, que possui viaturas caracterizadas, uniforme diferenciado, carabinas, espingardas, armamento não-letal e cães treinados. A Serra terminou em dezembro passado o primeiro curso de operações táticas de sua Romu, que desde então ganha destaque nas páginas oficiais da guarda nas redes digitais com suas ações e apreensões. Em Vila Velha, a Romu completou um ano de existência, tendo sido criada logo no início da gestão de Arnaldinho Borgo (Podemos), que tem dado bastante destaque à mesma. Em Cariacica, no primeiro mês de ação da Guarda Municipal recém-criada, uma abordagem truculenta ao cantor Mano Feijó, no bairro Vasco da Gama, provocou denúncia do artista e críticas de organizações sociais.

Arnaldinho Borgo posa com guardas na apresentação dos novos uniformes da Romu, em tom verde camuflado, diferente do azul marinho recomendado por lei nacional

“A questão é que as políticas de segurança pública têm sido pautadas na repressão e apenas em operações policiais nas periferias, estando a Guarda Municipal excessivamente incorporada a essa lógica, especialmente depois da criação de grupos táticos, de treinando nos moldes das polícias, assim como sua atuação em situações que envolvem atribuições que são específicas do policiamento”, analisa Luizane Guedes, professora do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisadora no campo da violência, segurança pública e relações étnico-raciais.

Não se trata apenas de uma desvirtuação do sentido de criação das guardas, pautado no patrulhamento comunitário e preventivo, mas também de descumprimento legal de suas funções, segundo Pablo Lira, professor do mestrado em Segurança Pública da Universidade de Vila Velha (UVV). “Em vários municípios brasileiros as guardas municipais vêm seguindo uma estruturação bem próxima das unidades especializadas das polícias militares. Isso é um movimento que se distancia da essência do Artigo 144 da Constituição Federal”, aponta.

Este artigo delimita as ações dos diferentes órgãos de segurança pública: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares; e polícias penais federal, estaduais e distrital. No inciso 8º acrescenta: “Os municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei”.

É só com a Lei 13.022, de 2014, que se dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais, válido para todas guardas do país. “Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal”, aponta o artigo 2º da lei.

“Cada órgão tem seu propósito e sua função. A gente não consegue resolver com somente um tipo de ação o problema da insegurança pública, e sim por meio da integração de ações de prevenção e de repressão qualificada”, explica Pablo Lira. Nesse sentido, ele cita três tipos de medidas de prevenção contra a violência. As primárias se baseiam em políticas básicas, de saúde, educação, assistência social, habitação e planejamento urbano. Em nível secundário estão policiamento ostensivo, circuitos de videomonitoramento e outras ações. A prevenção terciária se daria no sistema penal, atuando com medidas de punição e ressocialização de pessoas envolvidas com delinquência.

Prefeito de Vitória, Lorenzo Pazolini, com a primeira turma formada para atuar na Romu, grupo criado por ele na Guarda Municipal

“Não é necessário ter investimento maciço nas guardas municipais nesse sentido, se já existem estruturas das polícias civil e militar voltadas para a atuação contra essas organizações criminosas para reprimir de maneira qualificada”, aponta Pablo Lira, sobre os investimentos em armamentos pesados e nas unidades táticas. Isso não impede que a guarda e as polícias atuem conjuntamente, como já ocorre e é desejável, quando uma necessita do apoio da outra, mas cada uma dentro de suas funções.

Outra questão é sobre os recursos financeiros e humanos investidos nesses grupos táticos municipais. “Até que ponto essa guarda não está se distanciando e desmobilizando estruturas e pessoas que poderiam estar mais voltadas para o policiamento comunitário?”, pergunta o professor.

Ele ainda questiona sobre o uso do dinheiro público mobilizando grupos como o Romu, de custo mais elevado, para operações como a que ocorreu no Centro de Vitória no dia 13, que era uma ação do Disque-Silêncio junto a fiscais de posturas com apoio da Guarda Municipal. Segundo alegou a prefeitura à imprensa, durante a operação os guardas teriam recebido uma denúncia de tráfico de drogas, feito abordagens e prendido um jovem com entorpecentes e dinheiro.

O relato de um jovem que estava presente no local e foi ouvido pela reportagem, porém, contradiz a versão oficial. “É uma festa frequentada por jovens, minas, negros, negras, população LGBT. Chegaram de seis a oito viaturas com policiais descendo, correndo fazendo abordagem truculenta. Estavam altamente armados, alguns deles mascarados, eu filmei e um policial começou a me filmar. Foi uma sensação muito forte de opressão, com policiais no meio da galera com fuzis colocando terror, medo”. Nessa ocasião um jovem foi preso com entorpecentes e ambulantes foram autuados, inclusive uma senhora que foi empurrada pelos guardas, gerando uma indignação entre os populares, que gritaram contra a ação policial.

A vereadora de Vitória Karla Coser (PT) aponta que as abordagens costumam ser nitidamente diferentes dependendo do bairro e do público onde ocorrem. Além disso, ela mostra preocupação também com o treinamento dos guardas municipais para serem capacitados a atuar na Romu.

No caso da capital, do início do curso até a formatura oficial do primeiro grupo, foram menos de dois meses. Na Serra, o curso complementar para os agentes táticos durou cinco semanas. Ambos contaram com instrução de especialistas de outras entidades como Secretaria de Estado da Justiça (Sejus) e da Polícia Civil. Mesmo assim, e embora seja um curso complementar, é um tempo muito reduzido se comparado, por exemplo, com a formação de um policial militar. “Não é necessário apenas um preparo técnico para o manejo de armas, mas também um preparo psicológico”, alega a vereadora.

No entendimento de Daniel Cerqueira, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e coordenador do Atlas da Violência, para operações especiais de repressão, além de responder à sua determinação legal, a PM possui profissionais mais bem treinados e qualificados do que as guardas. Ele entende que há necessidade de cada corporação funcionar com seus protocolos de treinamento e doutrinas. “Os profissionais precisam internalizar essa doutrina e esses protocolos. As guardas precisam ter outra preparação doutrinária, treinamento e protocolos. Senão pode-se criar uma enorme confusão e situações muito perigosas para a sociedade”, diz.

Para Pablo Lira, a atuação das Romu, como tem acontecido, apresenta um risco de sobreposição com as ações da Polícia Militar, além de poder confundir os próprios agentes e a população sobre as atribuições e funções da Guarda Municipal.

Secretário de Defesa Social da Serra, Fabrício Dutra, com integrantes da Romu. Fotos de autoridades municipais junto a guardas com armas de maior calibre são corriqueiras. Foto: PMS

“Eu acho que a Guarda Municipal é uma instituição muito importante, muito significativa para a cidade, não só pela sensação de segurança, mas pelo trabalho realizado. Foi pensada, porém, com outras expectativas e outro propósito do que tem se tornado”, alega Karla Coser. A vereadora diz apoiar um novo plano de cargos e salários para a Guarda Municipal, mas acredita que ações como o aumento do armamento de alto calibre na guarda e iniciativas como as tecnologias de reconhecimento facial recém-anunciadas por Pazolini, não trazem o melhor retorno em relação à segurança pública para o município, por conta de seu alto custo e baixa eficácia.

Daniel Cerqueira afirma que há relatos inclusive de prisões e apreensões feitas pelas guardas que chegam a ser questionadas e relaxadas por contas das operações serem consideradas inconstitucionais ou ilegais por extrapolarem os limites de ação previstos em lei para estas corporações municipais.

Ele lembra que não é de hoje que há uma pressão do modelo policial sobre as guardas. Embora existam algumas muito mais antigas, houve um boom de criação de guardas civis no Brasil a partir dos anos 2000, ano em que a segurança pública entrou fortemente em pauta nas eleições municipais.

Esse efeito o conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública considera que foi positivo, pois até a década de 1990, os debates na área, em seu entendimento, eram muitos pobres e reducionistas, colocando a segurança pública como sinônimo de polícia, e de Polícia Civil e Militar, ambas de responsabilidade dos estados. “Tanto o governo federal como os municípios se envolviam pouco na questão. O ano 2000 forma um marco interessante, pois o governo federal entrou de forma mais decisiva na agenda de segurança pública e logo os municípios também a partir do debate eleitoral”.

No entanto, indica Daniel Cerqueira, a criação das guardas, na maioria dos casos no país, foi comandada por coronéis da PM. “Muitos deles criaram as guardas como retrato daquilo que conheciam da Polícia Militar, com policiamento ostensivo e toda cultura e princípios herdados. As pesquisas realizadas com guardas municipais mostram que o grande desejo de muitos deles é ser uma espécie de policial militar mirim. A ideia do guarda ser a polícia do município sempre esteve no inconsciente coletivo das guardas municipais”, analisa.

Guardas da Romu de Vitória em sua cerimônia de formatura. Foto: Jansen Lube/PMV

Esse é um dos fatores que facilita a ação dos políticos que Daniel aponta como “mercadores do medo”, que atuam de forma espetaculosa na política, vendendo falsas soluções para a segurança pública. Para ele, assim como as medidas preventivas, ações de segurança que realmente funcionam e geram grandes resultados são as de investigação e inteligência. Estas não geram grandes fotos e aparições na mídia, e nem são de responsabilidade dos prefeitos.

Mas esse tipo de ações, agora feitas com utilização corriqueira das guardas, cria um ciclo que retroalimenta muitos desejos. O de guardas que querem ser policiais; o dos políticos que querem mídia que mostrem que estão agindo pela segurança; o dos meios de comunicação que buscam manchetes policiais; e de boa parte da população, que amedrontada pela sensação de insegurança, enxerga as ações repressivas da polícia com bons olhos. Tudo isso já existia há tempos, mas nos últimos anos ganha força, por conta do crescimento da extrema-direita e do ambiente de ânimos constantemente inflamados pelo bolsonarismo.

A situação atual do país complica mais ainda a equação. “O que explicita-se é algo que já temos visto ao longo dos anos, que é a amplificação de questões sociais e econômicas, dando a elas caráter de colapso, transformando-as em ‘casos de polícia’. Como não temos um efetivo que dê conta dessa criminalização da pobreza, da negritude, recorremos a mais um aparelhamento para controle da população, a guarda municipal”, diz Luizane Guedes.

Para a professora, o lugar específico da guarda deveria ser a prevenção das violências, através de mediação de conflitos, promoção dos direitos da cidadania em nível local, e nos casos mais específicos de violência, na proteção de bens, serviços e instalações públicas municipais. “As guardas municipais têm um papel extremamente nobre na prevenção social para exercer um papel que não lhe foi designado de polícia coercitiva, que é missão da Polícia Militar”, considera Daniel Cerqueira.

Pablo Lira complementa o passe do colega estudioso de segurança pública com uma metáfora futebolística. “Fazendo uma analogia do texto constitucional com as funções do futebol, os zagueiros são quem fazem a repressão qualificada, o trabalho de contenção do crime com forças especializadas. A Guarda Municipal poderia fazer o ‘gol’ da segurança pública com seu trabalho comunitário, de proximidade, buscando entender as demandas do cidadão para evitar casos de violência e insegurança. Mas é como se pegássemos nosso melhor atacante e colocássemos na zaga, ou como goleiro no campo da segurança pública”, considera.

E para manter a linha da metáfora esportiva, com esse esquema, o Brasil segue tomando seu 7×1 diário na segurança pública. Até quando?

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