Professor Arlindo Vilaschi afirma que “enobrecimento” de áreas da Capital é parte de um processo de “limpeza”
Arlindo Vilaschi – O que nós temos agora é um processo muito singular, porque ele é determinado pela acumulação financeira, quase que exclusivamente. Esse é um processo especulativo muito recente na história da humanidade. Porque tem a especulação como parte do comércio, mas quem compra e vende imóvel, quem compra e vende obra de arte, também especula. Seja na Grande Vitória, no Brasil, em Nova Iorque. Só que, neste momento, é um processo muito singular, que é uma especulação em cima de dígitos. Então quando você olha, por exemplo, o que está acontecendo no entorno da Enseada do Suá, consegue identificar uma especulação que não é mais especulação. Não é uma especulação do tipo da empresa Comércio, Indústria de Engenharia Capixaba (Ciec) e de outros incorporadores das décadas de 60/70 do século passado. Nós estamos nos referindo agora a um processo de especulação que traz dinheiro da China, de Nova Iorque, de Londres. É um processo muito menos enraizado e muito mais determinista do que há 50 anos. E aí, tudo é feito em cima da singularidade desse processo especulativo. Então, vejo o processo da gentrificação não só da Curva da Jurema, mas de toda a orla do município de Vitória.
De que forma e quando esse processo se inicia?
Começa com um processo de privataria dos quiosques, que eram operados por pessoas da iniciativa privada, e você podia identificar pelo nome cada um dos operadores dos quiosques da Curva da Jurema e de Camburi. Tinha o JB, o Eltinho, e outros. O que o município de Vitória fez? Privatizou isso e transferiu todos esses quiosques para uma gestão unificada. Ali entregou todo o pacote. Para quê? Obviamente, aí entra o processo de gentrificação. Porque não interessa ao grupo financeiro que está por trás do que eu chamo de privataria da orla, fazer aquilo para os pobres, para ‘farofeiro’. Não interessa continuar permitindo o vendedor ambulante. Nesse processo, a primeira coisa a ser feita é limpar a área de qualquer vestígio de pobre. E isso começou com relação a moradoras e moradores de rua: o primeiro processo foi esse. Depois, vem outro em nome da segurança. Então, o que se tem: quiosques que se transformam num shopping a céu aberto, que não tem nada a ver com o usuário tradicional da Curva da Jurema. A entrada da classe média como usuária da Curva é muito recente, a partir do estabelecimento daquela Guarderia, que ‘enobreceu’ a área.
Esse processo de gentrificação que estamos falando aí, é para atender, majoritariamente, um processo oposto de especulação que começou com o loteamento da Enseada do Suá, na década de 70. Aquela área do shopping foi praticamente cedida, pelo preço tão irrisório, ao grupo Civita, para construir ali um grande hotel 4 Rodas, da Editora Abril, de São Paulo. Ali começou o processo com uma âncora importantíssima, o Shopping Vitória, que, num processo crescente de especulação, resolveu usar a área para fazer especulação imobiliária, que está em gestação há mais de15 anos.
Já na administração do então prefeito Luiz Paulo [Vellozo Lucas, PSDB – 1997 a 2004], foi feito o primeiro movimento de dividir a área toda em glebas; depois vieram com propostas de construir prédios, na administração de João [Coser, PT – 2005 a 2013] na qual quase que aprovaram uma indecência, e na atual administração [Lorenzo Pazolini – Republicanos] passaram o projeto que está ali. Um projeto de habitação que não quer conviver nem visualmente com a classe de renda mais baixa.
Como agentes públicos, políticos em destaque, contribuem para a consolidação desse processo de gentrificação?
Não é à toa que a gentrificação é paralela ao processo de convencimento da prefeitura para aprovar o projeto que lá está, convencimento da prefeitura e de moradores da região. O projeto foi apresentado como um enobrecimento da área que vai trazer ganhos imobiliários para todo mundo. Se você comparar o valor de imóveis, por exemplo, da Ilha do Boi, há cinco anos com os de agora, vai ver que tem um crescimento. Por quê? Ora, agora tem um grande empreendimento com apartamento a preços muito altos. O processo de gentrificação é vendido em nome da segurança, porque todo mundo ficava constrangido, com medo dos pobres que ficavam ali. Então agora não tem mais.
Esse cenário, ao seu ver, é uma comprovação do crescimento do controle total do mercado especulativo sobre a máquina pública e os agentes políticos, a impedir que o Estado desenvolva um projeto visando a sociedade como um todo? Ao contrário, direcionados pelo dinheiro, utilizam um discurso único que até convence as pessoas?
É isso, e é importante a gente entender que o capital, de um modo geral, sempre foi presente nas decisões dos poderes, seja ele local, estadual, nacional ou mundial. Com uma diferença: agora, já se faz irreversível, como se fosse irrelevante o interesse público e o interesse social, da coletividade. Vamos deixa claro. É óbvio que não interessava aos incorporadores e construtores da década de 70 um plano diretor para Vitória. Tanto é assim, que um plano que foi submetido à Câmara em 1979 e só foi aprovado quatro anos depois, com todos os obstáculos possíveis e imaginários. Se curvaram e entenderam que o momento não era para continuar determinando da maneira que quisessem e se adaptaram. A diferença, agora, é que está escancarado que o que vale é o interesse da especulação. Cria-se uma fantasia aqui, outra ali, mas o que vale é a especulação.
Como isso se processa, quais os exemplos concretos?
Nos últimos 20 anos, quais foram três obras absurdamente enigmáticas no processo de especulação naquela região ali da Praia do Canto? Primeiro, aquela construção no terreno dos Michelini (prédio do hotel Sheraton), que foi “tratorada” e feita daquele jeito, apesar das mobilização da população; o segundo foi a Chácara Von Schilgen. Aí, já se antecipando aos protestos, criaram uma fantasia que o empreendimento teria uma área de uso público. Se você pegar o projeto, a casa do Nicolau Von Schilgen está lá, mas qual o acesso que a população tem ao local? Nenhum. Outra obra representativa do que acontece em Vitória é o terreno que pertence à Santa Casa de Misericórdia, onde foi construído o prédio da Petrobras. Ali também veio uma cereja no bolo: olha vai ter uma área de circulação pública, que nunca fizeram. Não se tem nem acesso pela Reta da Penha, ninguém nem sabe do que se trata aquilo lá. Você tem que ir pela Constante Sodré para ver a entrada. O último, eles aprimoraram o método: naquela área atrás do Shopping Vitória, onde vão ser construídos vários prédios para público com poder aquisitivo mais alto, foram estabelecidos com obras de arte já instaladas. A minha pergunta é: por quanto tempo aquilo ali será público?
O processo especulativo é de tal ordem, que até o caráter do Shopping Vitória está mudando. Por isso não dá para dissociar esse quadro de um processo novo, que surge com a proposta de transformar, privatizar ou fazer uma concessão do Cais das Artes para instalação de startups.
Um crescimento alarmante do processo de exclusão social na cidade de Vitória?
Esse processo é crescente; a exclusão e a segregação não são novidades nenhuma numa sociedade escravocrata como a brasileira e, consequentemente, não é novidade numa cidade também escravocrata como Vitória. As nossas favelas foram erguidas onde ficavam as pessoas que trabalhavam nas nossas casas. Temos ainda a questão do bairro São Pedro, então esse processo de exclusão não é novo. O que não é recente em Vitória, e no Brasil, é o processo recente de gentrificação, que retira o usuário para ‘enobrecer’ a área para o uso de um número menor de pessoas. Quando eu imponho aquele modelo da Curva da Jurema, no qual os quiosques estão ocupando faixas crescentes da praia, com uso até de concreto, eu retiro as pessoas de menor poder aquisitivo para abrir espaço para aqueles que têm mais renda, que, ao caminhar pelo calçadão, vão se sentir mais seguros. Essa é a ideia.
Então não é coincidência que a autoridade municipal, há alguns anos, tenha acabado com o programa de cuidados com moradores de rua naquela região. Deixou-se de cuidar das pessoas – uma ameaça, entre aspas – e, quando o poder público não quer cuidar, coloca a polícia.
Esse quadro é mais grave quando assistimos a um discurso midiático sobre insegurança, direcionado no sentido de afetar essas pessoas, e quando podemos ver a Guarda Municipal usando fuzis, transformada em mais um braço da Polícia Militar?
Verdade, ela não está ali para a segurança das pessoas, mas para dar segurança ao patrimônio das pessoas.