Um julgamento emblemático para o Judiciário capixaba em relação ao combate à violência contra a mulher. Nesta segunda-feira (21), o agressor e ex-marido de Rosemery Casoli, Geraldo Cassimiro, será julgado na 10ª Vara Criminal do Espírito Santo pelos crimes denunciados no processo pelas duas vítimas. A filha do ex-casal, Bruna Casoli Cassimiro, também denunciou agressões do pai e integra o processo.
“Enfim o agressor será levado a julgamento”, celebra o Fordan, projeto de extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) que acompanha o processo. O projeto atua nesse e outros casos no Estado, mobilizando uma rede multinstitucional de apoio às vítimas de violência doméstica, grande parte delas revitimizadas pelos órgãos jurídicos, policiais e de outras instâncias, expondo-as a mais violência e maior risco de morte.
Em ofício encaminhado na última semana, o Fordan reforça a rede de apoio, convidando as entidades a acompanharem o julgamento. “Contamos com o acompanhamento de todas as entidades que têm se empenhado para que Rosemery Casoli não se transforme em mais um número na estatística de feminicídio”.
Entre essas instituições, estão os conselhos nacional e estadual de Direitos Humanos, (CNDH e CEDH), Ministério Público do Estado (MPES), Defensoria Pública Estadual (DPES), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-ES), além do Fórum de Mulheres (Fomes) e lideranças políticas ligadas à causa feminista e de direitos humanos.
“A vítima precisa de justiça, mas também, o movimento de luta contra a violência às mulheres precisa desta vitória, para não perdermos a fé nas instituições públicas”, salienta o Fordan, acrescentando que o caso alcançou repercussão nacional, “devido à complexidade em relação à aplicação da Lei Maria da Penha na sua integralidade”.
No Ministério Público, um dos braços fortes nesse trabalho de apoio às mulheres agredidas que buscam a justiça, é o Núcleo de Enfrentamento à Violência de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres (Nevid/MPES).
O Núcleo atua principalmente no “fomento e acompanhamento das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres e no assessoramento técnico e jurídico dos membros do Ministério Público”, explica a promotora de Justiça Cristiane Esteves Soares, coordenadora do Nevid.
Judiciário limitado
“Não atuamos em processos. Trabalhamos em projetos de maneira global para a instituição”, diz a promotora, citando, entre os projetos, o Mapa de Mortes Violentas de Mulheres no ES de A a Z e capacitações para os servidores das diversas instituições que compõem a rede de apoio às mulheres e envolve, além do Judiciário, as polícias civil e militar, guardas municipais e secretarias municipais de saúde, educação e de assistência social. Somente para policiais civis e militares, as formações do Nevid envolveram 1,2 mil pessoas em 2021.
“O primeiro momento que a mulher tem contato com essa rede é com as polícias. Esses policiais têm que ter esse cuidado e não focar somente na questão criminal. A própria lei estabelece, no artigo 12, que cabe à autoridade policial fazer os encaminhamentos na rede. E, na saúde, por exemplo, muitas vezes a mulher chega com transtornos mentais, como compulsão e depressão, e as secretarias precisam conseguir identificar isso, que uma doença psicossomática surgiu em razão da violência”, descreve Cristiane. “Há várias subnotificações da violência doméstica”, enfatiza.
Esse trabalho de apoio e formação, aponta a promotora, visa corrigir uma falha que persiste nesses espaços, inclusive no Judiciário. “A atuação do Judiciário é muito restritiva em relação à Lei Maria da Penha. Não só decisões de magistrados, mas tribunais superiores também. Vemos isso quando eles entendem que alguns casos não são de violência contra a mulher, enquanto para nós, que estudamos a lei de maneira mais profunda, está muito claro que se trata de violência doméstica”, afirma.
“No Espírito Santo e em outros estados, as varas especializadas estão muito sobrecarregadas”, diz, apontando uma das possíveis explicações para repetidos julgamentos que revitimizam as vítimas de violência, mesmo por magistrados que a princípio estão à frente das varas que deveriam se destacar na aplicação plena da Lei Maria da Penha, como ocorreu com a professora, artista plástica e pesquisadora da Ufes Rosemery Casoli.
Medidas protetivas
Foi somente depois que o caso saiu da vara especializada e passou a tramitar na vara comum, que o julgamento do agressor foi finalmente marcado. Os últimos pedidos de medida protetiva feitos pela professora foram negados pela juíza Brunella Faustini Baglioli, da Vara da Mulher de Vitória. Na última negativa, em setembro passado, a magistrada reafirmou que “não há contornos de gênero. Não há opressão, submissão ou subjugação do masculino sobre o feminino”, e declinou do processo.
No mesmo dia, no entanto, na Vara Criminal, a juíza Raquel de Almeida Valinho decidia pela prisão de José Cassimiro, irmão e advogado do ex-marido de Rosemery, em função das agressões que o ex-cunhado deferiu contra a professora e que estão sendo investigadas também pela OAB-ES. A magistrada em seguida autorizou a liberação de José, mediante o cumprimento de medidas cautelares, semelhantes às estabelecidas na medida protetiva estabelecida na Lei Maria da Penha, como manter distância mínima de 500m e proibição de fazer contato com a vítimas, mesmo que por meios eletrônicos.
A partir do enquadramento de José, o processo de Geraldo, que acabava de chegar à vara geral da Justiça, acabou tendo tramitação acelerada, com marcação do julgamento para esta segunda-feira (21).
“Temos acompanhado os pedidos de medida protetiva no Judiciário. Os indeferimentos são consideráveis”, alerta a coordenadora do Nevid/MPES, informando que somente em janeiro de 2022, dos 1.170 pedidos feitos, apenas 776 foram deferidos.
Atendimento acolhedor
Cristiane Esteves Soares acredita que a essência da mudança de mentalidade que precisa acontecer, para a plena aplicação da Lei Maria da Penha, é adotar uma “perspectiva de gênero” no tratamento dos casos de violência. “Entender que a mulher que sofre violência é uma vítima”, e não o contrário, como acontece tantas vezes, em que a mulher tem seu relato menosprezado e sua dor invisibilizada, precisando provar que o agressor é o réu e não o contrário.
“Vivemos em uma sociedade patriarcal, cheia de senãos, de justificativas. A mulher agredida tem duas redes de proteção: a primeira, formada por amigos e familiares, e a secundária, que somos nós, onde ela tem que ser muito bem acolhida”, ensina. “O profissional tem que entender os motivos porque ela permanece com o agressor, se econômicos, afetivos, o desejo de proteger os filhos. O atendimento precisa ser acolhedor e sem julgamento”.
Denúncias
Negativas de medidas protetivas e outras violências institucionais podem ser denunciadas ao Nevid por meio da Ouvidoria das Mulheres do Ministério Público, lançada no ano passado. O número de telefone é o 127, da Ouvidoria-geral do MPES, e o e-mail é o
[email protected].