Escritor usa na obra o auxílio de mescalito, yerba del diablo e humito
Castañeda proporciona aquela abordagem antropológica que descobre, explora e desvenda novos mundos, metafísicas estranhas ao que herdamos no Ocidente, um desafio que parte da estrutura da língua que também define esta cosmovisão e de como um povo ou etnia articulam suas vivências e as associam com visões metafísicas, cosmovisões, valores compartilhados e costumes arraigados em tribo, clã ou uma aldeia maior.
Esta experiência direta de pesquisa de campo leva o pesquisador a se defrontar com uma estrutura que define a percepção de realidade destas pessoas, colocando em suspenso o juízo de pesquisa, neste desafio da relatividade e alteridade do academicismo da manjada Antropologia Cultural, mas, aqui, no caso de Castañeda, numa chave solta e direta de uma construção literária. O que se sabe imaginariamente da concepção inaugural da horda, por exemplo, traz ao simbólico desta experiência também o caráter em que irá mergulhar Castañeda como escritor que articula um discurso aparentemente impossível e surreal de um psiconauta.
A sua interação com o feiticeiro Dom Juan é um desafio em que Castañeda está disposto e aberto a mergulhar no desconhecido, e lidar com o inaudito da experiência alucinógena. Mesmo sendo auxiliado o tempo todo por um feiticeiro, que parece viver cotidianamente neste universo psiconáutico, este já sabe de toda esta linguagem cifrada da experiência e vivência alucinógena, povoada por uma série de métodos e enigmas que Dom Juan apresenta a Castañeda durante as experiências alucinógenas do escritor, parece que Castañeda tem dificuldades de entender, a princípio, tanto a experiência em si, durante a sua alucinação, como as abordagens e sugestões de Dom Juan, que lhe parecem absurdas e extravagantes.
Quando falamos das experiências religiosas do êxtase, por exemplo, na biografia de Santa Teresa D’Ávila e de outros santos extáticos, não temos ainda uma perspectiva filosófica, e muito menos científica, e nem mesmo a abordagem proto-antropológica de Castañeda. Ao fazer literatura com isso, temos somente a crença religiosa, em sua maioria de cepa católica, sem citar o nirvana búdico ou satori, e tudo o que se fala do êxtase se restringe a esta vivência ascética e religiosa, sem grandes consequências de uma metafísica filosófica sobre o tema ou de uma abordagem de ciência que possa estudar isto como algo de um epifenômeno neuronal.
Castañeda usa o auxílio de mescalito, yerba del diablo e humito, que são peiote, datura e cogumelos. O aprendizado de feiticeiro também é uma das interpretações em que se tece este relato de Castañeda. A simples alucinação passa ainda longe da construção de sentido aqui exposta.
Quando falo de uma escrita psiconáutica, a sua sofisticação tanto se atém à experiência alucinógena em si, como nesta interação cultural com um feiticeiro que vive em outro mundo, partindo daí a principal ansiedade de Castañeda, o seu esforço de fundamentar esta nova ordem de realidade, que é uma tentativa metafísica ocidental de amarrar algo que lhe escapa. O paradoxo, mais uma vez, se bate com o relativismo da própria experiência antropológica e de seu limite natural de ser barrado num discurso sobre a própria ignorância, restando ao pesquisador criar o seu conceito, e não a descrição própria de uma realidade.
Citando o prefácio do livro A Erva do Diabo, podemos ler : “Os antropólogos nos ensinam que o mundo tem definições diversas em diversos lugares. Não é só que os povos tenham costumes diferentes: não é só que os povos acreditem em deuses diferentes e esperem diferentes destinos após a morte. É, antes, que os mundos de povos diferentes têm formas diferentes. Os próprios pressupostos metafísicos variam: o espaço não se conforma com a geometria euclidiana, o tempo não constitui um fluxo contínuo de sentido único, as causas não se conformam com a lógica aristotélica, o homem não se diferencia do não-homem nem a vida da morte, como no nosso mundo. Conhecemos alguma coisa da forma desses outros mundos pela lógica dos idiomas nativos e pelos mitos e cerimônias, conforme registrado pelos antropólogos”.
A vivência de Dom Juan é a de um feiticeiro yaqui. A nova ordem de realidade de Castañeda, a sua teoria metafísica, também vem do que ele ouviu de Dom Juan, temos então a versão de Castañeda da compreensão natural de um feiticeiro yaqui ao descrever e explicar do que se tratam estas experiências alucinógenas, tudo num mistifório em que se juntam não somente a alucinação, como toda uma vivência de conhecimento natural e tradições arraigadas que também podem influenciar o que é dito por Dom Juan sobre alucinógenos e experiências alucinógenas. Portanto, esta descrição fiel do fenômeno não existe, o que temos é o que Dom Juan sabe e aprendeu, e o que Castañeda entendeu desta fala de um feiticeiro yaqui.
A experiência pessoal e interior de Castañeda com os alucinógenos, nesta obra A Erva do Diabo, tem, mais uma vez, o esforço bem ocidental de tentar incutir uma lógica interna, o que poderá produzir uma visão metafísica, conceitual, o que amarra o fenômeno ou experiência em uma linguagem ainda exangue para lidar com os enigmas e perturbações do que se pode entender de uma alucinação produzida por ervas ou cogumelos.
A fala alegórica, por sua vez, interage bem melhor do que um discurso etnográfico com pretensões filosóficas. Viver alguns dias com um feiticeiro yaqui tomando alucinógenos, para entender agora literariamente tudo isso, a abertura alegórica pode criar esta metonímia da alucinação e lidar bem melhor com o inaudito, irracional, subconsciente, alucinatório, saber falar do fantástico, esta vivência do desejo psiconáutico, que é uma tentativa de alegoria da realidade, o verniz que cria o que Castañeda tenta chamar de nova ordem de realidade, mas que pode ser uma evanescência, um fantasma que se esvai numa alegoria feita de fumaça.
Encerro aqui com o último parágrafo do prefácio, escrito por Walter Goldschmidt: “As entrevistas de Carlos Castañeda com Dom Juan tiveram início quando ele era estudante de antropologia na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Temos uma dívida para com ele por sua paciência, sua coragem e perspicácia ao procurar e enfrentar o desafio de seu duplo aprendizado e por nos relatar os detalhes de suas experiências. Nesta obra ele demonstra a habilidade essencial da boa etnografia – a capacidade de ingressar num mundo estranho. Acredito que ele encontrou um caminho com o coração”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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