Prima do jovem e advogada da família, Fayda Belo entende tragédia como caso de “homicídio por dolo eventual”
“Homicídio por dolo eventual”. A classificação jurídica é apontada por Fayda Belo, advogada da família do jovem Kevinn Belo Tomé da Silva, morto no último sábado (30) após esperar por atendimento por quase cinco horas dentro de uma ambulância na porta do Hospital Estadual Infantil e Maternidade Alzir Bernardino Alves (Himaba), em Vila Velha.
De posse das informações já reunidas no inquérito em andamento na Divisão Especializada de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de Vila Velha, Fayda afirma ver indícios contundentes que a levam a essa classificação. “Pasme! O inquérito está no início, mas já constam elementos muito relevantes que dão conta de que houve realmente omissão”, relata, com base nos elementos disponibilizados pela Polícia Civil nessa quarta-feira (4).
O “homicídio por dolo eventual” é uma variação do crime de homicídio doloso, em que a pessoa tem intenção de matar (ao contrário do homicídio culposo, em que não há intenção), mas que a morte decorre não da ação direta de assassinato, e sim da recusa em prestar socorro por parte de alguém que tem obrigação legal de fazê-lo, assumindo o alto risco que tal negativa carrega.
“No momento em que as médicas da emergência não receberam o Kevinn, que elas e outros agentes de saúde envolvidos não o atenderam, por mais de quatro horas, e que não efetuaram a internação hospitalar que ele precisava, esses agentes assumiram o risco de produzir a morte dele”, aduz.
Prima do adolescente, Fayda compartilha do sofrimento e revolta dos familiares. “Estamos todos arrasados. Ele era filho único, jovem, tinha sonho de ser um Neymar. Mas o trataram como se fosse um pedaço de carne. Por quê? Ele era preto? Pobre? É desumano. Se fosse o filho de um homem rico, um jovem branco filho de empresário, duvido que teria ficado mais do que 15 minutos ali esperando um leito”, desabafa.
“Vamos continuar uma busca implacável para enviar alguém até o banco dos réus, ou mais de uma pessoa, porque não vejo que foram só as médicas que erraram. A gente precisa que a mãe [Suzana Belo da Silva] tenha uma resposta jurídica à altura do seu sofrimento”, reivindica.
Onze altas médicas
A primeira negligência que salta da análise do livro de plantão do Himaba, sublinha Fayda, é a recusa das médicas plantonistas – afastadas ainda no sábado pelo secretário de Estado da Saúde, Nésio Fernandes – em internar o adolescente, mesmo após vários pedidos feitos pela equipe do hospital.
“Há relatos, inúmeras vezes, do corpo técnico orientando a troca de leitos, afirmando que existia vaga, e tentando uma forma de colocar o Kevinn dentro do hospital. Mas as médicas estavam resistentes a isso”, conta, contrapondo, portanto, a defesa das duas médicas, que afirma ter havido negativa do hospital em liberar o único leito de UTI disponível, em função de uma reserva feita por um hospital privado de São Mateus, norte do Estado, para um paciente que estava em trânsito. “Enquanto médicas, elas não podiam ter deixado o Kevinn na ambulância todo aquele tempo. De jeito nenhum”, ressalta.
Outro profissional que aponta negligência das médicas afastadas, prossegue Fayda, é o médico da ambulância. “Ele foi até as médicas e pediu que elas dessem uma recusa por escrito para que pudesse procurar leito em outro hospital, mas elas não entregaram o documento. Também pediu por um aparelho que faltava na ambulância, somente o hospital tinha. Também não foi atendido”.
Fayda relata que, segundo o livro de plantão, enquanto Kevinn permaneceu na ambulância, houve três altas médicas e, após o óbito, mais oito. “Isso quer dizer que havia leitos urgentes ocupados por pessoas estáveis, que poderiam ter sido ocupados por Kevinn”.
Racismo
Fayda é especialista em crimes de gênero, direito antidiscriminatório e feminicídios, e tem um grande número de seguidores em suas redes sociais, onde ganhou notoriedade com vídeos curtos que explicam aspectos essenciais do mundo das leis para o público leigo. O sucesso é tamanho que ela até recebeu a honrosa alcunha de “Annalise Keating do Brasil”, em referência a uma das mais famosas personagens interpretadas pela premiada atriz estadunidense Viola Davis, a primeira mulher negra a ganhar um Oscar, um Emmy e um Tony Awards.
A morte trágica de seu primo, no entanto, trouxe a ela uma realidade que até então ela considerava que só poderia existir nos filmes. “Para mim era impensável que alguém, um ser humano, pudesse largar um jovem dentro de uma ambulância em estado grave, abandoná-lo à morte”, lamenta.
“No Brasil o direito ao acesso ao SUS [Sistema Único de Saúde] e à saúde é universal. Está na nossa lei maior, a nossa Constituição Federal. E mais do que isso, há o direito à vida, como cláusula pétrea. O Himaba é um hospital público de portas abertas, ou seja, qualquer pessoa que chegar até ele, deve ser recebida e atendida imediatamente”, explana. “É cruel. É desumano. A minha única explicação para tudo isso é o racismo”.
A Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) ainda precisa ouvir outros envolvidos no caso, incluindo a família de Kevinn e as médicas afastadas. O tempo médio para relatoria de um inquérito é de um mês, podendo ser prorrogado por mais um mês, explica Fayda. Mas sua vivência jurídica com casos emblemáticos, aponta que este deve demorar um pouco mais. “Muitas coisas que ainda vão ser enviadas ao inquérito. Eu também vou enviar um pedido para que outras provas sejam juntadas”, informa.
Protesto
Neste sábado (7), quando completa uma semana da morte de Kevinn, familiares e amigos realizam um protesto, às 8h, na Praça Jerônimo Monteiro, no centro de Cachoeiro de Itapemirim, onde o rapaz residia com a família.
“Será um clamor por justiça. Para que todo mundo saiba que o Kevinn era uma vida e tinha uma vida toda pela frente, que tinha família, que era amado. Para que todos os atores envolvidos, a polícia, o hospital, o governo…todos possam olhar o caso com afinco e não deixem que os culpados fiquem sem arcar com esse crime gravíssimo e monstruoso”.