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Repactuação deve garantir vida digna aos atingidos, diz conselheiro do CNJ

Organizações de atingidos rejeitam intenção do governo federal de usar recursos em obras na BR-262

Como devem ser geridos os recursos que serão pagos pela Samarco, Vale e BHP Billiton, após o processo de repactuação conduzido há um ano pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)? Quais ações e obras devem ser financiadas com a verba destinada a reparar e compensar os danos ambientais e socioeconômicos provocados pelo rompimento de Fundão, em 2015? O que já se sabe é que uma parte irá para o caixa da União, uma outra será dividida entre os governos do Espírito Santo e Minas Gerais. 
Qual vai ser a participação direta dos atingidos na definição da forma de aplicação dos recursos? Para conhecer as principais demandas das comunidades atingidas, o conselheiro Luiz Fernando Bandeira de Mello visitou áreas impactadas pela lama de rejeitos ao longo do leito e da Foz do Rio Doce e também na Terra Indígena Comboios, em Aracruz, norte do Estado, durante a última semana de abril.
Luiz Silveira/CNJ

Ele representa o CNJ no esforço de repactuação, que envolve também os governos, as empresas responsáveis pelo crime e os órgãos de Justiça que representam os atingidos, os Ministérios e Defensorias Públicas da União e do Estados. 

“A cada enchente que acontece, as comunidades sofrem novos prejuízos, e é importante que essa repactuação traga novo alento, permita que as pessoas virem a página para iniciar um novo capítulo em suas vidas. A degradação do rio está dada. O que temos de fazer agora é achar uma forma de conviver com isso e que as pessoas tenham uma forma de vida digna”.

Durante os dias de visita ao Estado, Luiz Bandeira ouviu diversos relatos “emocionantes”, segundo apontou, e pôde ver de perto a condição da água, do rio e do solo impactado.

Luiz Silveira/CNJ

Do presidente da Associação de Pescadores de Regência, Leoni Carlos, a comitiva do CNJ e órgãos de Justiça ouviiram que a entidade tinha um convênio com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que comprava a produção dos pescadores e a distribuía a entidades assistenciais da região para abastecer a merenda escolar das escolas locais.

“Depois que a lama veio, acabou tudo. É a maior decepção da minha vida. Criei meus nove filhos pescando – rio e mar – e o que eu posso dar a eles é o estudo. Hoje eu não tenho o [benefício do] meu cartão, cortaram meu lucro cessante [compensação pela média da produção anual]. O barco estragou”, afirmou Carlos. Com a embarcação abandonada, o casco de madeira foi consumido por um molusco do mangue chamado busano.

Na Terra Indígena Comboios, a médica que atende o posto de saúde, Aline Miranda, confirmou inúmeros casos de doenças de pele e de diarreia na comunidade, que não é banhada diretamente pelo Rio Doce, mas sofre influência dos 44,5 milhões de metros cúbicos de rejeitos vazados desde a Barragem de Fundão. Segundo ela, mesmo com as crianças proibidas de nadar no rio, uma de suas pacientes começou a sofrer com problemas de pele. O tratamento que melhorou o quadro foi parar de tomar banho com a água do poço artesiano, como sempre fazia, e passar a usar água mineral.

“As pessoas não tomam água direto do rio, mas de poço artesiano. Então acredito que o poço tenha alguma contaminação. Não tenho os números à disposição, mas os índices de diarreia diminuíram bastante e as crianças tomando banho com água mineral se curaram ou melhoraram muito da alergia”, afirmou a médica.

Participantes

Conforme resume o próprio CNJ, seu envolvimento começou “depois do esgotamento e da insuficiência das soluções elaboradas até então para reparar natureza e vida humana do desastre”.

Na primeira rodada da repactuação, em setembro de 2021, foram avaliadas as propostas apresentadas pelo atingidos durante a primeira audiência pública realizada pelo CNJ, além de ações de reparação e o aprimoramento dos programas de proteção social. Nos encontros realizados desde então, foram tratadas questões ligadas ao reflorestamento, à proteção social aos vulneráveis, à execução dos programas de reparação da região atingida, à possibilidade de reabertura da repactuação integral, aos reassentamentos da população atingida e à compensação da comunidade e meio ambiente afetadas pelo crime.

Na última terça-feira (3), o conselheiro foi convidado para uma reunião para apresentação dos projetos que os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo vão submeter à seleção de propostas a serem financiadas pelo acordo da repactuação.

Luiz Silveira/CNJ

 BR-262

Sobre os planos de cada governo, uma das polêmicas se situa em torno da BR-262. Tanto o governo federal quanto a gestão de Renato Casagrande (PSB) já declaram interesse em usar a verba da repactuação em obras na estrada. Um dia após o esperado encontro do conselheiro do CNJ com os governos, a intenção foi novamente declarada, desta vez pelo ministro de Infraestrutura, Marcelo Sampaio, que afirmou intenção de aplicar R$ 3 bilhões na rodovia federal. 

“Nossa posição é contrária ao uso desse recurso da reparação em obras de infraestrutura que estão fora da região atingida. Na verdade, somos contra a aplicação desses recursos sem diálogo com os atingidos”, afirma Heider Boza, da direção estadual do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), uma das organizações a defender os direitos dos atingidos pelo crime. 

“Nossa pauta demanda do governo a aprovação da Peab [Política Estadual de Direitos das Populações Atingidas por Barragens] e a criação do fundo social. Essas duas ações implicam em garantia de participação social para a construção das políticas públicas da reparação. Não somos contra duplicar a rodovia, nem contra obras de infraestrutura. As comunidades atingidas possuem grandes demandas de infraestrutura, mas o recurso da repactuação tem que ter como objetivo final a reparação das áreas atingidas, e a participação social nesse caso é obrigação do governo estadual”, reforçou.

Luiz Silveira/CNJ

Representante da Comissão de Atingidos de Regência e Entre Rios e de grupos produtivos de Regência dentro do Conselho da Foz do Rio Doce, Luciana Souza de Oliveira defende posição semelhante. “Vejo na repactuação a possibilidade de se pagar uma dívida social, ambiental, cultural e econômica, de seus anos, com todos os atingidos da Calha do Doce. Afinal, estamos sendo ‘marginalizados’, esquecidos, inelegíveis durante todo este tempo. Então, colocar o atingido reconhecendo seus direitos mais básicos e entender que a nossa participação é fundamental e direito nosso neste processo de repactuação, é minimamente um começo para iniciarmos juntos a virar essa página tão sofrida para todos que dependiam, dependem e precisarção do Rio Doce para contar sua história!”

As demandas prioritárias, elencou, são bem conhecidas e devidamente ressaltadas para o CNJ: “os atingidos devem ter seus direitos a indenizações, AFE [Auxílio Financeiro Emergencial], lucro cessante, segurança hídrica e alimentar, assessoria técnica concretizados, bem como o direito à saúde e práticas de recuperação do Doce asseguradas. E ninguém é melhor para garantir isso do que a representatividade dos atingidos”.

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