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​Mobilização busca dar visibilidade às mulheres escritoras do Estado

Mulheres se reuniram para foto histórica que pode ser pontapé para criação de um coletivo de escritoras 

No Século XVII, uma jovem chamada Maria Ortiz comandou uma mobilização de expulsão de invasores holandeses na Ladeira do Pelourinho, na vila de Nossa Senhora da Vitória, entrando na história por ser algo que uma mulher não podia ser: corajosa. Quatro séculos depois, a Ladeira do Pelourinho agora é Escadaria Maria Ortiz, a vila de Nossa Senhora da Vitória é apenas Vitória, capital do Espírito Santo, mas nesse mesmo lugar em que os holandeses foram expulsos, um grupo de mulheres se reuniu para mostrar que podem ser algo que muitos em nossa sociedade ainda acreditam que não: escritoras.

Luara Monteiro

Esse encontro de cerca de 70 mulheres escritoras, no qual foi tirada uma foto com todas elas, aconteceu nesse domingo (12), por meio de uma mobilização que começou em São Paulo e acabou motivando grupos de todo o Brasil, ocorrendo em 20 cidades brasileiras. Extrapolou as fronteiras e foi realizada também na Alemanha, Inglaterra e Portugal. No Espírito Santo, a iniciativa foi organizada pelo Leia Mulheres, um coletivo de leitura de obras de autoria feminina, cujas atividades acontecem mensalmente no Sesc Glória, no Centro da Capital.

A integrante do Leia Mulheres, Taiga Scaramussa, explica que a ideia da foto na Escadaria Maria Ortiz é “mostrar que elas estão produzindo, estão no mercado editorial”, uma vez que, embora as mulheres tenham conquistado espaços, como na própria literatura, ainda existem obstáculos a serem superados, como a baixa participação nas academias de letras, o menor índice de reconhecimento nos prêmios literários de maior prestígio, e, até mesmo, a crença no fato de que mulheres escrevem assuntos considerados como tipicamente femininos pela sociedade machista, como amor, casamento e família.

“A mulher pode escrever sobre esses temas, pois são assuntos que perpassam nossas vidas, mas não somente sobre isso, e não quer dizer que um homem não possa abordar essas temáticas também. A literatura é livre”, diz Taiga, que, dentro dessa concepção da liberdade literária, afirma que o encontro de domingo reuniu “a literatura contemporânea feita por mulheres, e não a literatura feminina contemporânea”, uma vez que não há uma escrita feminina.
A ideia, afirma, é que o encontro não se resuma a uma foto, mas sim, tenha desdobramentos. Algumas sugestões surgiram no diálogo entre as escritoras, como a realização de uma feira literária e criação de um coletivo e de um espaço para venda de livros.
A atriz e escritora Suely Bispo foi uma das participantes. Para ela, o encontro de domingo foi “um momento histórico de registro de uma movimentação que já existe e deve ser potencializada”. Ela destaca que percebe já há alguns, em diversos lugares nos quais chega, as escritoras se organizando em coletivos. “A mulher quer ter voz, por muito tempo fomos caladas, querem desqualificar, desprestigiar nossa fala. A escrita é um lugar para colocar nossa voz, o que a gente pensa, o que a gente deseja”, enfatiza.
Luara Monteiro

Suely destaca a presença de mulheres negras na literatura, salientando que, no Brasil, estão presentes nela desde o Século XIX, quando, em 1859, ocorreu a publicação de Úrsula, primeiro romance publicado por uma mulher negra, a professora abolicionista do Maranhão Maria Firmina dos Reis. De lá para cá, aponta, outras se destacaram também, como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. No Espírito Santo, ela cita nomes como Elisa Lucinda e Vera Viana. “Somos muitas já, é importante sair do lugar de invisibilidade, trazer nossa visão, nosso olhar sobre nós mesmas”, ressalta.

O encontro na Escadaria Maria Ortiz também atraiu mulheres do interior, como Maria das Graças Gozzer, Bárbara Gozzer Machado e Amélia Schultz Zager, de Santa Maria de Jetibá, região serrana. Maria das Graças acredita que foi uma forma de “mostrar a diversidade na voz das mulheres, com escritoras de todas as cores, tipos de cabelo, de todas as vozes”. Como moradora da região de montanha, ela afirma ter sido importante entrar em contato com escritoras de outras culturas dentro de seu próprio Estado.

Da esquerda para a direita: Maria das Graças, Bárbara e Amélia. Foto: Luara Monteiro

Academias de letras

A Academia Espírito-Santense de Letras foi fundada em 1921, mas somente em 1981 uma mulher, que foi Judith Leão Castello Ribeiro, passou a integrar esse espaço, até então totalmente masculino. Prestes a fazer 101 anos em julho próximo, foi presidida por uma mulher pela primeira vez somente em 2002, quando a escritora Maria Helena Teixeira assumiu a gestão, que terminou em 2004.

A segunda mulher a se tornar presidente foi Ester Abreu, que atualmente ocupa esse posto. A academia conta com 40 cadeiras, sendo seis ocupadas por mulheres e 34 por homens. Ao longo de sua história centenária, apenas 12 escritoras foram consideradas imortais. A ausência do público feminino, impulsionada pelo machismo, foi a motivação para a criação, em 1949, da Academia Feminina Espírito-Santense de Letras, que teve Judith como sua primeira presidente.
Hoje a presidência está com Jô Drumond, que recorda que a própria Academia Espírito-Santense de Letras sugeriu a criação da Academia Feminina. “Existe um questionamento se eles queriam de fato dar voz às mulheres ou se queriam que fosse criada para que elas não ocupassem a Academia Espírito-Santense, um lugar que era visto somente como deles”, afirma Jô.
De acordo com ela, o preconceito contra as mulheres escritoras ainda existe, muitas vezes, de forma velada. Entretanto, em 2010, quando ela se candidatou a uma vaga na Academia Espírito-Santense, o machismo vivido não foi nada velado. A escritora rememora que um integrante da Academia, diante de sua candidatura, disse “não quero saber de mulher aqui, mulher é bicho complicado”.
Jô acredita que a questão do machismo é histórica, colocando a mulher em um “lugar de inferioridade, em um papel secundário”. Como exemplo, ela aponta que a Academia Francesa de Letras, criada no século XVII, aceitou mulheres somente depois da Academia Brasileira de Letras, ou seja, após 1977, quando Rachel de Queiroz se tornou imortal no Brasil. Ela recorda ainda que escritoras que foram inivisibilizadas, como a esposa do poeta Olavo Bilac, proibida pelo marido de prosseguir na literatura por escrever melhor do que ele.
O machismo, acredita Jô, vai muito além da literatura perpassando vários campos. “Basta você entrar numa loja de brinquedos, que vão perguntar para você se o que quer comprar é para menino ou menina. Se for para menina, é panelinha, boneca. Se for para menino, é arma, carrinho. É difícil desconstruir isso”, pontua.

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