Texto: Henrique Alves
Fotos: Gustavo Louzada/Agência Porã
Luana até quis resistir. Mas quando viu um cano de pistola se afundando na cabeça do único filho homem, entendeu que a covardia não dialoga. O sentimento de impotência foi implacável, mesmo para uma mulher pobre, semi-analfabeta, desempregada e com quatro filhos aos 29 anos.
Chegou em Barra do Riacho com a mãe e três irmãos. O enredo é bem brasileiro: mãe precisa trabalhar e deixa filhos em casa a cargo da mais velha. Assim Luana abandonou os estudos antes da hora e começou a trabalhar antes da hora. O último emprego foi de ajudante de pedreiro.
Hoje divide um desmazelado lar com o atual companheiro, Fábio, e as quatro crianças e, há seis meses, divide com os cinco uma angústia: a iminência de não ter para onde ir. O fio em que se equilibram se liga, num ponto, à violência e, noutro, à incompetência.
Luana Maria da Silva, 29, natural de São Mateus, e Fábio de Jesus, 19, natural de Pedro Canário, além das quatro crianças, viveram a madrugada em claro e a manhã dantesca do dia 18 de maio de 2011, quando foi escrita uma das páginas mais repugnantes de violência oficial da história capixaba recente.
Há exatos dois anos, em Barra do Riacho, Aracruz, o Batalhão de Missões Especiais (BME) investiu contra cerca de 300 famílias para cumprir uma decisão judicial de reintegração de posse do loteamento Nova Esperança, um terreno de 100 mil metros quadrados situado numa área mais afastada do distrito.
A selvageria falou sozinha. Agarrada às crianças, Luana resistiu na casa, a polícia se aproximando, até um soldado mirar a cabeça de Igor, um menino loiro de grandes olhos verdes. Fábio também resistiu, mas foi detido. Lançado dentro de um camburão, foi abandonado horas depois, sozinho, no meio da BR-101 em Ibiraçu. Voltou a pé.
A casa em que moram ofende qualquer ideia de dignidade humana. As paredes externas são sem reboco. Entulhos como o fogão velho e inútil que pende, meio torto, no chão desnivelado de barro seco, se amontoam nos dois primeiros cômodos. O piso é de cimento batido, as paredes são sujas, a fiação elétrica corre pela estrutura de madeira que sustenta o telhado de Eternit. Não há água, nem luz.
Todo o conjunto de objetos da casa é doação. Um móvel de TV empoeirado, entulhado de objetos e sobre o qual repousa tristemente uma TV 12 polegadas desligada, a cama de casal e o sofá precários, o guarda-roupa, panelas amassadas, o armário de aço torto na cozinha. Afora alguns documentos, tudo foi arruinado pelos tratores da prefeitura.
Na outra ponta do fio, os órfãos de Nova Esperança como Fábio e Luana foram acolhidos pelo Projeto Aluguel Social, da Prefeitura de Aracruz, que destina mensalmente cerca de R$ 300 para as famílias bancarem um novo lar.
No entanto, na prática, a maior parte das famílias pena com o atraso no pagamento e, logo, acumula meses de dívidas. As consequências são previsíveis: os proprietários dos imóveis pressionam pela suspensão dos contratos e, desconfiados, fogem de quem depende de Aluguel Social. Sabem que a dívida é quase certa.
A pressão sobre o casal Fábio/Luana é esmagadora. O irmão da dona da casa chegou à ameaça de invadir o imóvel com um trator. Hoje a coisa mais próxima a um lar que Fábio vislumbra é a barraca que a solidariedade alheia também lhe deu.
Meia hora antes da reportagem chegar, Fernanda Ribeiro recebeu um telefonema da prefeitura: uma ordem de despejo fora expedida contra ela e o marido, Gerfeson Fernandes. Não foi dado prazo, apenas a recomendação para que deixassem urgentemente o imóvel. O Aluguel Social está atradaso há meses, o que, claro, despertou a má vontade e impaciência do proprietário com seus locatários. O casal tem um filho de quatro anos.
Gerfeson e Fernanda investiram cerca de R$ 15 mil na casa de Nova Esperança. Ele contraiu empréstimo em banco. As prestações dos móveis nem haviam sido honradas quando, dois meses depois, os tratores da prefeitura destroçaram tudo. Embora mutilados, alguns móveis foram salvos. Mas as pendências financeiras sujaram o nome de Gerfeson, que está desempregado. Fernanda não trabalha, cuida da casa.
O casal achou uma nova casa e, com R$ 50 aqui, ali e acolá, completaram os R$ 300 para adiantar o aluguel. O problema é que o dono do imóvel viajou e levou o contrato de aluguel junto. Gerfeson não sabe o que fazer: o documento é indispensável para requisitar o Aluguel Social. Mas e se não conseguirem contato com o proprietário, como quitar o aluguel? Pelo menos as chaves estão com ele.
Originalmente uma colônia de pescadores, Barra do Riacho é hoje um pedaço de terra espremido a leste pelo mar e a norte, sul e oeste por indústrias e empresas, apartado quilômetros da ideia de progresso que uma fábrica de celulose possa representar. Dos eucaliptos, sente-se apenas o odor nauseante no ar.
As ruas são estreias, muitas asfaltadas, as casas são simples, muitas sem reboco. Há apenas um posto de saúde – a Unidade de Pronto Atendimento mais próxima fica na sede de Aracruz, numa distância de 26 quilômetros. A violência escolar está obrigando a polícia a vigiar a saída dos alunos das escolas municipais. Às 11h daquela quarta-feira, dois soldados numa viatura faziam a operação.
Barra do Riacho se localiza numa das regiões mais piscosas do Espírito Santo, que vai do encontro do Rio Piraquê-Açu com o mar, em Aracruz, a Regência, em Linhares. Nos bons tempos, seus pescadores se beneficiavam especialmente do Rio Riacho. Mas aí chegou o desenvolvimento.
Duas agressões ambientais fulminaram a então colônia. Um: o desvio do Rio Riacho para alimentar fábricas da ex-Aracruz Celulose (atual Fíbria), cuja operação necessita, por característica, de muita água. Dois: a instalação do Portocel, porto especializado no embarque de celulose. Há ainda uma terceira: o desvio do Rio Doce para os mesmos fins, afetando toda uma cadeia produtiva pesqueira.
Ao mesmo tempo, um velho e conhecido discurso transformava Aracruz num eldorado dos empregos (tal qual hoje com Anchieta ou Presidente Kennedy), o que velava ações predatórias e atraía forasteiros para o município. Essa realidade ainda perdura – nenhum personagem desta matéria é nativo de Barra do Riacho – e vai perdurar – a região continua recebendo novos moradores, em busca de uma chance no Estaleiro Jurong.
O déficit habitacional é um dos principais problemas para os 10 mil moradores de Barra do Riacho. A região não tem para onde crescer, cercada que está por empresas e indústrias. A vida privada de Barra do Riacho reflete a incúria: netos ainda vivem com os avós, bisnetos idem com os bisavós.
Um modelo econômico que devasta o meio-ambiente, cala o poder público e aniquila uma economia tradicional gera frutos como Nova Esperança. Em 2009, a prefeitura sancionou uma lei destinando a área para o programa Minha Casa, Minha Vida. O projeto não vingou, a insatisfação cresceu e em 2010 a ocupação foi iniciada.
Hoje a área de Nova Esperança é um cenário monótono de mato, terra, poeira e vento. Em quase cinco anos, foi tudo o que uma promessa conseguiu produzir.
Mãe de uma menina e mulher de um homem desempregado, diabético e com cinco filhos de outra relação, Júlia Rocha chegou em Nova Esperança com a filha, a enteada e o esposo. Família humilde, pagava um aluguel caro. A casa própria era um sonho. “A casa estava tão bonitinha, tudo limpinho. A gente nunca imaginou que ia acontecer. Ô dia que eu chorei”.
Foram oito meses em Nova Esperança que desaguaram no mesmo triste fim: ver os móveis da sala, quarto e cozinha sendo tragados pelas rodas de um trator – tudo também ainda por pagar – e ainda sair com a pele queimada e a garganta ressecada pelos gases.
Desde julho do ano passado, a família de Júlia está instalada num prédio de dois andares que também abriga outras sete famílias enxotadas de Nova Esperança. Ela ocupa o andar de cima, de onde se avista ao longe um amplo eucaliptal. Uma ventania danada invade a sala preenchida apenas por uma cama de casal, um móvel e uma TV.
Certamente a situação dessas oito famílias é menos aflitiva que a dos demais órfãos de Nova Esperança. Ali, o Aluguel Social também está atrasado, mas, segundo Júlia, o proprietário do imóvel é um homem que compreende a situação das famílias. Talvez por isso os olhos de Júlia pareçam (de novo: pareçam) mais serenos. Na expressão dos outros entrevistados via-se uma grande e carregada nuvem de aflição.
Ninguém derramou uma única gota de lágrima. Quando lembrou o episódio da arma encostada no filho, a voz de Luana falhou. Os olhos de Júlia marejaram delicadamente quando reportou o clamor da filha: “Mãe, você falou que eles não iam derrubar”. Chorar, ninguém chorou.
A vida segue. Veja o Fábio: quando a reportagem chegou, estava ao longe, na poeirenta estrada de chão. Levantou-se às 6h daquela quarta para ir ao Sine de Barra do Riacho, onde logo cedo um mundo de desempregados se ajunta. Fábio chegou, sentou e logo sentiu alguém cutucar-lhe o ombro.
Era uma amiga: funcionária do Sine e também órfã de Nova Esperança, sabia dos maus bocados do amigo com a casa. Falou para ele: “Espera aqui que vou fazer uma ligação. Não saia daqui”. Ele não saiu e quando ela voltou, estava empregado. Auxiliar de serviços gerais numa empresa de produtos químicos. Um salário mínimo.
Quando a reportagem chegou, Fábio acabara de fazer exames – adesivos de quem tirou sangue ainda cobriam seu braço – e ia ao novo emprego entregar a carteira de trabalho. Não foi. Voltou para nos contar sua história. Mas, finda a entrevista, levantou-se e saiu, cheio de pressa. Além de apresentar-se ao novo emprego, tem outra missão ainda mais urgente a cumprir: buscar um novo lar para a família.