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Se minha mala falasse

O vasto mundo é caminho redondo, acabamos sempre no mesmo lugar

Passagens finalmente compradas, me dedico agora à insana tarefa de incluir numa simples malinha de 23 kg tudo que preciso ou quero levar. Mala agora também sofre de anorexia. A minha tem história – ou conhece minha história. Persistente, me acompanhou em muitas viagens mundo afora, rolou suas rodinhas em terrenos diversos – às vezes bem pavimentados, outros tantos escorregadio. Não anda muito bem das pernas, ou das rodas, mas que fazer? Sofro de apego emocional aos bens materiais que me servem bem.

*

Se minha mala falasse, responderia que eu também já não controlo muito bem as minhas rodinhas, e deve estar certa. Mas continuo rodando, o vasto mundo é caminho redondo, acabamos sempre no mesmo lugar. Qual será a próxima parada? Se minha mala falasse responderia “Próximo destino, Brasil, Espirito Santo, Vitória e adjacências”. Parafraseando Kafka, depois de dois longos e tenebrosos lockdowns. Tempos melhores virão, diria a mala se falar pudesse – Não há mal que sempre dure, o sol sempre nasce outra vez…essas coisas que as malas falam quando todos se calam.

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Durante esse obscuro período de medos e incertezas, a velha mala ficou esquecida no fundo do armário – por duas vezes quase foi parar no GoodWill. Pra quê acumular entulho se nunca mais viajo? Sim, foram tempos difíceis. Outras vezes sucumbi à fraqueza das propagandas enganosas – belas malas mais elegantes e mais leves, ideais para esses tempos de reduções e encolhimentos. Duraram pouco – e voltei à minha mala como volto pra você – fielmente me aguardando no cantinho mais profundo do armário, escondida atrás das inutilidades a que nos apegamos.

Se minha mala falasse, com certeza saberia mais sobre os lugares visitados do que eu, pois que atenta sempre está aos meus cuidados. Acho mesmo que ela tem o dom de ler meus pensamentos. O que conter nesses mínimos 23 quilos? A mala não me deixa ilusões – Num tá vendo que já passou do limite? Mas não pus nem a metade do que preciso levar. Tá podendo pagar excesso?

Essa mala que me acompanhou nas muitas fases das variações aéreas – 34 quilos, 43 quilos – agora dá xilique quando ponho um casaquinho a mais. Tá frio lá, sabia?

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Houve um tempo em que o céu era ilimitado – levava microondas, churrasqueira, máquina de assar pão, skates para os filhos, tênis com vários números, pois os pés nessa época cresciam depressa – Hoje não tem lugar nem para um vidrinho de melatonina…e todo mundo pede. Pelo amor de Deus, não durmo sem ela! Lugar na mala tem, quando quer sempre dá um jeitinho. O problema é o peso.

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Se minha mala falasse diria que o peso é que pesa, ela ainda aguenta muita mileagem pelas rotas dos sete ventos. Já acrescentei uma nova cláusula ao meu testamento – quero que minha mala xadrez seja enterrada comigo. Podem até me enterrar dentro, que caibo, sem problema de peso. Onde mais eu poderia carregar minha farta bagagem emocional nas rotas do Hades?

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