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‘Em muitos territórios, a horta comunitária é o único acesso à comida de verdade’

Jardim da Capixaba representou o Estado em audiência pública sobre Política Nacional de Agricultura Urbana

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“Para além das estatísticas, a fome, para mim, tem cor e tem nome, e passa na porta da minha casa todos os dias”. A afirmação é da agricultora urbana Ione Duarte Pereira, polinizadora da Rede Urbana Capixaba de Agroecologia (Ruca), que representou o Espírito Santo na audiência pública sobre a Política Nacional de Agricultura Urbana (PNAU) – Projeto de Lei nº 353/2017, em discussão em comissões do Senado Federal – realizada nessa quinta-feira (30). 

O debate é resultado de uma articulação das organizações e movimentos sociais relacionados ao Coletivo Nacional de Agricultura Urbana da Articulação Nacional de Agroecologia (CNAU/ANA) e foi coordenado pelo deputado federal Padre João (PT-MG), presidente da Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional no Congresso Nacional (FPSAN)

Residente da comunidade periférica da Capixaba, em Vitória, Ione enfatizou aspectos da realidade das famílias deste morro da Capital, que se repete em tantos outros territórios periféricos do Estado, que é a urgência da fome, intensificada pela pandemia de Covid-19. Em seu relato, a agricultora também salientou que as soluções para permitir o acesso da população mais vulnerável a alimentos saudáveis já estão funcionando em diversas hortas comunitárias, devendo essas experiências serem usadas como base para a formulação da política nacional e das políticas estaduais e municipais. Mas, principalmente, é preciso que ações sejam implementadas pelos entes públicos urgentemente. 

“Quando penso nas cestas básicas que alguns estados fornecem para as pessoas, essas cestas vêm com amido e açúcar. A complementação, com alimentos saudáveis, tem que vir de algum lugar, então pensar as hortas urbanas que atendam a esses coletivos e comunidades, é uma urgência. A gente não quer uma discussão para daqui a dez anos ou esperar até outubro. E a gente quer que ela seja feita a partir das experiências que já acontecem nas comunidades, porque são experiências muito específicas, muitas vezes o que funciona aqui na Capixaba não é o que vai funcionar em Santa Catarina, por exemplo. E é preciso convocar pela urgência de ações. Precisamos de ação, precisamos de recursos, precisamos de semente, de terra, porque a cidade também planta e nós temos ferramentas e saberes para isso”, conclamou. 

Ao defender as especificidades das experiências, Ione contou como a horta da Capixaba se desenvolveu, no momento mais crítico da pandemia. “Era um período de fome muito extenso, porque o único acesso que as famílias tinham a alimentos saudáveis era o que elas coletavam nas xepas das feiras. Foi entendendo que a comunidade estava sedenta por essa alimentação, que iniciamos essa horta em terrenos baldios”. 

Uma vantagem da Capixaba, ressalta, é o “luxo” de ainda contar com espaços para hortas, nos terrenos baldios do bairro. Assim, surgiu o “Jardim da Capixaba”, que atendeu a quase todas as famílias da comunidade, mais de 150. “Vimos uma revolução acontecendo”, celebra. “Tão bonito ver mulheres descendo o morro e as crianças carregando as abóboras e um sorriso no rosto!”, lembra. 

Situação que Ione viveu na própria casa. “No pior momento da pandemia, o único acesso que a minha família tinha a alimentos de verdade era a horta comunitária. E essa ainda é a realidade de muitas famílias na comunidade e em outros territórios”. 

Nesse período, os aprendizados foram surgindo naturalmente. “No começo plantava alface, rúcula, couve…e a comunidade colhia ainda muito pequeno. A gente pensou em estipular regras, para colher mais tardiamente, esperar as verduras ficarem maiores, mas isso não foi possível, porque entendemos que aquelas pessoas estavam com fome e a fome é uma necessidade imediata”, sublinhou. 

Especificidades

O relato na audiência, observa, foi importante principalmente para levar a necessidade de pensar um projeto nacional que seja erguido a partir das experiências e necessidades de cada território. 

“Nossa participação foi muito importante para que esse PL e as discussões posteriores tramitem pensando nas especificidades de cada local. A tendência, quando é política nacional, é que se construa de cima para baixo, sem considerar as especificidades do território. Aqui no Espírito Santo é completamente diferente de como é feito no sul ou no nordeste. Existe uma sociedade urbana com acúmulos, e que esses acúmulos sejam considerados nessa política nacional”, acentuou. “E que de fato sejam feitos repasses federais para implementação dessas ações que já foram testadas e que a gente sabe como funciona. A gente sabe que o agronegócio não vai promover uma segurança alimentar para as pessoas. É preciso investir nessa agricultura urbana”, reivindicou.

Ione ressalta que o mapeamento feito pela Ruca mostrou que “grande parte das hortas acontece principalmente em territórios onde há uma demanda alimentar, são hortas que atendem uma necessidade imediata, da fome”. No futuro, pontua, espera-se que elas também atuem na geração de renda, na difusão de diferentes usos de água e dos resíduos orgânicos – “quanto dinheiro público é gasto na retirada desses resíduos, que poderiam ser direcionados para as hortas, que precisam tanto de adubo” –, na educação ambiental de forma mais sistemáticas, questões que já estão mais avançadas em outros estados. 

A realidade capixaba também carece de comprometimento dos atores políticos, acentuou. “No Espírito Santo, a discussão de políticas públicas que sejam direcionadas para agricultura urbana e periurbana patinam muito ainda, embora a gente convide ao diálogo nossos políticos locais para que sejam direcionados recursos. A gente espera que o poder público estadual e municipais também nos convide para esse diálogo, porque temos muitas demandas para apresentar para ele, antigas, que a gente não tem tido tanta escuta e ações efetivas”, pleiteou. 

Fome aumentou no Brasil

Antecedendo Ione nas falas durante a audiência, a integrante do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Juliana Casemiro, apresentou números nacionais da fome, reunidos na segunda edição do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II VIGISAN), feito pela Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

Segundo o estudo, 125 milhões de brasileiros possuem hoje algum grau de insegurança alimentar. No final de 2020, quando a primeira edição do Vigissan foi publicada, 9% dos lares brasileiros passavam fome, cerca de 19,1 milhões de pessoas. Em 2022, esse número cresceu para 15,5%, o que significa que 33,1 milhões de brasileiros hoje estão em situação de fome. 

Nos lares comandados por mulheres, a situação é mais grave, com três em cada dez convivendo com algum nível de insegurança alimentar. Neles, a fome passou de 11,2% em 2020 para 19,3% em 2022. 

A ativista salientou a necessidade de ações públicas em áreas de saúde, assistência social e agricultura familiar, para mudar esse quadro. 

Em paralelo ao aumento da situação da fome, salientou Juliana, ocorre um processo de invasão de produtos ultraprocessados nos lares mais humildes. “Sem políticas públicas que apoiem alimentos in natura e minimamente processados, a distância de preços entre os alimentos de verdade e os ultraprocessando vai continuar aumentando”. Metade das famílias que reduziram as compras de arroz, feijão, vegetais e frutas, sublinhou, conviviam com insegurança alimentar moderada ou grave e, entre elas, a presença do ultraprocessada é maior. 

“A agricultura urbana e perirubana pode ampliar a produção de comida de verdade, encurtar o caminho para que a comida boa chegue no prato das pessoas, e também alimentar debates sobre sistemas alimentares mais justos e sustentáveis das pessoas que vivem em centros urbanos”.

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