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Iniciativa privada detém 80% do recurso público da saúde, diz especialista

Campanha propõe oito ações para fortalecer o SUS, do qual a própria saúde privada e todos os brasileiros dependem

Marcello Casal/ABr

A privatização crescente da saúde no Brasil é uma das explicações para o enfraquecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), da qual a própria saúde suplementar (privada) e todos os brasileiros dependem. Atualmente, a maior parte do dinheiro público destinado ao setor tem sido cada vez mais drenado para empresas e outras pessoas jurídicas não públicas, por mecanismos também cada vez mais diversos. 

A observação é da pesquisadora capixaba Elda Bussinguer, doutora em Bioética e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), para quem “a saúde suplementar (privada) é SUSdependente”. Segundo suas pesquisas, “mais de 80% dos recursos públicos da saúde estão nas mãos da iniciativa privada”, afirma, citando as Organizações Sociais (OSs) e contratualização de leitos em hospitais particulares, pelos governos, como as principais formas de privatização. 

No caso das OSs e hospitais ditos filantrópicos, sublinha, elas não são, de fato, entidades sem fins lucrativos. “AS OSs só são organizações sociais no nome. Na prática, agem como empresas privadas, que visam lucro. Seus gestores têm lucros exorbitantes”. 

Já sobre os hospitais privados, Elda conta que boa parte deles “funciona como se fosse fundações, entidades filantrópicas”, recebendo isenções tributárias, que enriquecem ainda mais seus gestores. As clínicas de hemodiálise são o exemplo mais emblemático, destaca. “Quase 100%, talvez 98% do tratamento de hemodiálise no Brasil é feito com dinheiro público. É um dos tratamentos mais caros, e quando o tratamento é caro, as empresas prestam o serviço por meio do SUS”. 

O contexto de privatização também incide sobre o repúdio à suspensão do pagamento do piso salarial da Enfermagem, feito pelo ministro Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no dia quatro de setembro. Ao contrário da justificativa apresentada pelo magistrado, de que não há provisão orçamentária pública nem privada para o aumento definido na Lei 14.434/2022, Elda afirma que “o Congresso Nacional fez vários estudos, não desequilibra o sistema. Na verdade, é preciso que os lucros das empresas privadas de saúde sejam um pouco diminuídos. Grupos privados lucraram muito na pandemia, agora era hora de alguém abrir mão de parte dessa alta lucratividade para que essas pessoas tenham um salário digno”, pondera.

A fragilização do SUS, reafirma, afeta a todos. A própria saúde suplementar, que é financeiramente dependente dele, bem como toda a população brasileira – incluindo os menos de 25% que são clientes dos planos privados – que, consequentemente, também é SUSdependente. Até porque, ressalta Elda Bussinguer, o SUS não é só posto de saúde e hospital. 

“Não existe ninguém que não dependa do SUS. A Vigilância Sanitária é SUS. Portos, aeroportos, restaurantes, fábricas, escolas, consultório médicos…o controle das condições sanitárias em todos esses ambientes depende do SUS. A Vigilância Epidemiológica é SUS. E todos somos dependentes dela. O controle das doenças, quantos diabéticos têm no país, como avançam os surtos ou epidemias de doenças infecciosas…tem que haver uma inteligência por trás disso para fazer os controles e cercamentos. E isso não é feito pelo consultório médico, é o SUS que faz isso”, exemplifica. 

‘Fortalecer o SUS’

As posições da presidente da SBB ecoam na Campanha Fortalecer o SUS, capitaneada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), que dispõe de um manifesto, direcionado aos candidatos ao Executivo e Legislativo deste ano, e de uma petição online aberta a todos os cidadãos. 

No documento, a Abrasco ressalta algumas outras grandiosidades do SUS brasileiro: é o maior sistema público do mundo de transplantes de órgãos; é responsável por organizar um dos maiores sistemas de atendimento de emergência (o Samu); oferece a toda população brasileira tratamento irrestrito a doenças crônicas e raras; é um sistema comprometido com a pesquisa, a produção e o acesso a medicamentos, com o acompanhamento contínuo em Unidades Básicas de Saúde e pelas equipes de Saúde da Família; realiza planos e programas voltados para a melhoria das condições de saúde de populações vulnerabilizadas. Sobre a vacinação, outro trunfo do SUS, a Abrasco salienta que a imunização contra Covid-19 em 2021 conseguiu evitar a morte de 219 mil pessoas. 

O desinvestimento, no entanto, contrasta com essa importância. O documento expõe que o orçamento público para a saúde vem diminuindo ao longo das décadas. O primeiro corte, apresenta a Abrasco, ocorreu em 1993, logo após a criação do SUS, em 1988, quando o governo federal interrompeu a transferência de recursos da previdência para despesas em saúde. No ano seguinte, o Fundo Social de Emergência (depois substituído pelo Fundo de Estabilização Fiscal e pela Desvinculação das Receitas da União) permitiu a desvinculação de 20% do orçamento da seguridade social para outros gastos do Tesouro Nacional, proporção que atingiu 30% no ano do impeachment contra a presidente Dilma Roussef, em 2016. No mesmo ano, foi publicada ainda a Emenda Constitucional nº 95, a EC do Teto de Gastos, estabelecendo um novo regime fiscal e o congelamento dos gastos com saúde e outros setores essenciais por vinte anos. 

Atualmente, segundo a Abrasco, “o gasto público em saúde no Brasil [é] menor que o gasto privado (despendido por pessoas, famílias e empresas)”. Citando dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a entidade destaca que, em 2017, o país gastou 9,2% do PIB em saúde, sendo 3,9% (42%) gasto público e 5,4% (58%) privado.

“Uma participação em torno de 75% de gasto público caracteriza os sistemas de saúde universais no mundo. Na América Latina e Caribe, os únicos países que superam essa proporção são Cuba, com participação de 89,4% e Costa Rica, com 75,1%”, contextualiza a Abrasco, destacando o movimento retrógrado que o Brasil tem empenhado. 

A situação é pior em âmbito federal: “a União reduziu sua participação de 63,8% dos gastos públicos em saúde em 1995 para cerca de 42% em 2017, enquanto os municípios aumentaram seu financiamento de 17,4% para 31,6%, e os estados passaram de 18,8% para 25,5% no mesmo período”.

A entidade corrobora a posição da presidente da SBB sobre a gravidade da privatização da saúde no Brasil. O crescimento do capital privado, salienta, se tornou mais relevante a partir dos anos 2000, a partir de dois circuitos principais, “ambos com traços nítidos de inserção financeirizada na economia nacional e vinculações com fundos de investimentos estrangeiros”. O primeiro compreende as já citadas OSs, bem como fundações e faculdades de graduação da área de saúde, que se alicerçam “em instituições filantrópicas e universidades públicas”, cujo fluxo financeiro é oriundo diretamente de receitas públicas”.

O segundo circuito é formado por “hospitais, unidades de diagnóstico e terapia privadas e empresas de planos de saúde, que dobraram o número de clientes entre 2000 e 2015” e têm sua receita oriunda de “empresas que mantêm planos privados para empregados, indivíduos e famílias, e de recursos públicos diretos e indiretos (pagamento de planos de saúde para funcionários de estatais e dos poderes judiciário, legislativo e executivo e subsídios fiscais)”.

Em resumo, denuncia a Abrasco, “não há dúvida de que o fortalecimento do SUS encontra um enorme obstáculo neste setor privado com suas conexões com a filantropia e os fundos públicos”. Padrão esse que impõe barreiras à própria “melhoria das condições de vida e saúde, uma vez que é, inerentemente, movido por negócios que intensificam desigualdades de exposição a riscos e de acesso e uso de serviços”. 

Como exemplos de mecanismos que configuram esse padrão de intensificação das desigualdades, estão a condução dos processos formativos dos profissionais de saúde por instituições privadas; e a localização dos serviços de saúde em áreas onde circulam os segmentos privilegiados da sociedade. 

Saúde e democracia

A rigor, aduz, “os embates entre a saúde pública e a saúde privada, ou melhor, entre a saúde como direito e a saúde como mercadoria estão inseridos em disputas muito mais profundas sobre os modelos de sociedade, Estado e desenvolvimento propostos para o Brasil e outros países do mundo”.

Na petição, a Abrasco enfatiza que “a ideia de saúde que está presente na construção do SUS não entende a saúde como ausência de doenças”. Nesse contexto, “é evidente que a saúde depende também da eliminação das desigualdades, do saneamento, da preservação do meio ambiente, de controle da violência, do transporte e da educação pública, do combate ao racismo e à opressão de mulheres”. Em resumo, “a efetivação do direito universal à saúde depende, centralmente, da democracia”, por isso, “os objetivos da saúde universal e de qualidade associada ao SUS se deparam com barreiras e contradições no interior do próprio modelo de Estado, sociedade e de desenvolvimento do país”.

Melhorar a gestão 

Além do financiamento, é preciso avançar em uma série de temas relacionados à gestão do sistema. A campanha apresenta oito propostas nesse sentido, baseadas nos “princípios e evidências que regem outros bons sistemas de saúde no mundo e em inúmeros estudos nacionais recentes e por experiências bem-sucedidas em diversos locais do país”. 

São elas: assegurar o financiamento regular e adequado ao atendimento das necessidades de Saúde; adequar o modelo de atenção do SUS às necessidades de Saúde; fortalecer e consolidar o caráter público do SUS; ampliar a integração política, organizacional e operativa no SUS; aprimorar a gestão do SUS de maneira democrática e participativa; garantir a ocupação de cargos de gestão do SUS com base técnica; implantar política de pessoal integrada para o SUS; e sustentar sólida política de ciência, tecnologia e inovação em Saúde.

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