“Não esperava passar por isso num evento de cultura negra”. Vítima prepara representação criminal contra agressores
Um jovem preto espancado por seguranças contratados por um evento de promoção da cultura negra. O paradoxo impensável aconteceu na madrugada desse domingo (25), ao final da programação da noite de sábado do evento Bekoo das Pretas, no Estádio Kleber Andrade, em Cariacica. A vítima, o estudante de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Iury Fernandes.
O boletim de ocorrência já foi lavrado e o exame de corpo de delito também foi feito. No BO, consta que o ataque teve início quando ele, a namorada e outras amigas – as três mulheres, brancas – estavam tentando comprar comida com o saldo do cartão do evento. Diante da recusa dos vendedores da barraca e sob risco de perder o valor significativo que restava no cartão, uma das garotas insistia na compra, enquanto ele e as outras duas se aproximaram mais da barraca, para apoiar a amiga.
Nesse momento, conta Iury, um segurança do evento, vestido de terno preto, se aproximou dele com agressividade verbal: “Ah, você de novo, toda hora você querendo arrumar confusão”. Sem entender o motivo da acusação, o jovem conta que se manteve calmo, mas em seguida outros seguranças se juntaram e formaram um cerco em torno dele e começaram a empurrá-lo para fora do local.
Ele conta que teve um lapso de memória nessa parte do atrito, não se recorda o que aconteceu até o momento em que se viu no chão, com a roupa rasgada, sem tênis e outros pertences pessoais, e muito machucado.
“O relato das meninas é que enquanto o primeiro segurança falava comigo, os outros fizeram uma roda em torno de mim e começaram a me empurrar. Não fizeram nada com elas, foram nitidamente racistas comigo. Elas perguntaram o que estava acontecendo, eles não respondiam, só foram me empurrando. Me jogaram no chão e eu reagi. A partir daí, me lembro de tentar me levantar, com dificuldade”.
Ele calcula que a agressão se deu ao longo de uma distância de 50 metros, entre o gramado e o cimentado próximo da arquibancada. “Eu fui empurrado, provavelmente me chutaram e me bateram, porque estou bem doído e alguns hematomas estão aparecendo hoje [segunda-feira, 26] na cabeça, na testa, no nariz, na mandíbula, no pescoço (…) Fiz o corpo de delito ontem [domingo, 25] no DML, mas só hoje apareceram esses hematomas”.
A agressão dos homens de terno só teve fim quando uma outra equipe de segurança, na parte externa do evento, se aproximou. “Eles tentaram me proteger da equipe interna, foram eles que apartaram. Estavam vestidos de forma diferente, roupas normais, pareciam descaracterizados como segurança”.
Em seguida, prossegue, um homem que se identificou como chefe da segurança reconheceu o erro da equipe de dentro do evento. “Com isso, não queriam deixar eu ir embora, até a Polícia chegar, para que eu conversasse com os policiais. Nesse momento também se aproximou um servidor da Secretaria de Esportes, de nome Fernando, que insistiu em continuar ali, disse que tinha se sentido ofendido por mim. Ele é baixo, branco, de cabelos grisalhos, falou que também queria a Polícia, para representar contra mim”.
Iury diz que só continuou lá porque foi impedido de sair. Quando a Polícia Militar chegou, de seis a oito policiais o cercaram, novamente. “Minhas amigas tentaram identificar, mas alguns tapavam o nome. Eles pediram para eu contar tudo o que tinha acontecido e perguntaram se eu queria fazer a ocorrência naquele momento. Mas eu tinha tentado contato com alguns advogados antes disso e, como não consegui falar com ninguém, não quis ir à polícia. Minhas amigas também estavam muito nervosas. Os policiais militares pareciam não querer que eu fosse. O servidor também disse que não queria ir na delegacia”.
Por último, uma equipe de organização do evento, incluindo Priscila Gama, a CEO do Instituto Bekoo das Pretas, entidade responsável pelo Festival, também foi ouvir seu relato, mas, ao final, segundo ele, não tomou qualquer providência.
“Eu estava muito calmo até então, não tinha levantado a voz. Mas depois de contar tudo e ver que a organização não fez nada! Ela só virou as costas e foi embora. Enquanto eu estava tentando achar meus pertences, eu ouvi alguém da organização dizer algo como ‘a gente paga o tênis’, como se dissesse, ah, isso não é problema nosso, vai embora logo. Nesse momento eu fiquei incrédulo, porque a gente não espera de jeito nenhum esse tipo de tratamento, num evento de promoção da cultura negra”, protesta.
Outra falta grave, na sua avaliação, foi a ausência de uma ambulância no evento. “Não tinha ambulância e também não ofereceram atendimento médico”.
O espancamento, seguido do descaso dos organizadores do evento, foi um choque para Iury e as amigas. “Para ser sincero, me incomodou muito o fato de ter passado o domingo todo em delegacia, no DML, enquanto a organizadora do evento estava tirando foto como governador do Estado, depois de eu ter sido agredido num evento de responsabilidade dela e ninguém da organização ter entrado em contato comigo, mesmo várias pessoas já terem relatado o caso com eles”, desabafa.
Nesta segunda-feira (26), ainda circulam vídeos denunciando a agressão, mas alguns dos comentários postados nas redes sociais do Bekoo das Pretas sobre o episódio, afirma, estão sendo apagados.
Assistido juridicamente por uma advogada popular negra, Iury prepara uma representação criminal por agressão e racismo.