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‘Levo minha filha para os movimentos desde cedo, para ela saber os direitos dela’

Ocupação dos trilhos da Vale na Terra Indígena completa 28 dias e mobiliza crianças, jovens, adultos e idosos

A ocupação dos trilhos da Vale que atravessam a Terra Indígena Comboios, em Aracruz, norte do Estado, completa nesta quarta-feira (28) 28 dias de resistência empenhada por famílias inteiras, reunindo Tupinikim e Guarani de todas as idades e diversas aldeias. 

O cotidiano da mobilização é preenchido com atividades corriqueiras, de produção coletiva do alimento, rodízios de vigílias nas barracas, conversas sobre estratégias de luta, assembleias semanais, recepção de apoiadores da causa indígena, cânticos, orações e celebrações ao som dos tambores de congo, tradição ancestral dos Tupinikim e um dos principais ícones da identidade cultura capixaba. 

Permeando os afazeres da resistência e luta, pela revisão do acordo feito com a Fundação Renova para compensar e reparar os danos provocados pelo crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce, o cuidado permanente com os idosos e as crianças, sempre presentes. 

Daniele Pereira Coutinho e Alan de Oliveira, moradores de Caieiras Velha, são uma das famílias que participam diariamente da ocupação, acompanhados da pequena Serena, de dois anos. “Eu levo Serena para os movimentos desde cedo, para ela entender quais são os direitos dela”, afirma a mãe.

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Filha de pescador, Daniele conta que ela e os quatro irmãos foram criados na beira do rio Piraquê-Açu, hoje contaminado pelos rejeitos de mineração trazidos pelo mar e pelo rio Comboios, também contaminados pela vazão do Rio Doce. 

“Nós fomos criados tudo na cata de marisco, na pesca…uma vida mesmo dentro do rio Piraquê-Açu. Com essa tragédia que aconteceu no nosso rio, meu pai não pode mais ir pescar. Ele não pega o caranguejo, os crustáceos. Isso afeta a gente. Tenho irmãos com mais de trinta anos que não podem também continuar a tradição do nosso pai. A gente não pode mais dar o caranguejo, o crustáceo para as crianças, não pode deixar as crianças brincarem no rio, como sempre foi”, relata.

Nascido não indígena, mas acolhido no território em função do casamento com Daniele, o pai de Serena reforça o relato da tradição Tupinikim junto ao rio, aprendido ao longo dos anos de convivência dentro da aldeia. “A vivência dos povos Tupinikim e Guarani é o rio, na cata do caranguejo, do goiamun, da ostra, da ameixa, na pesca…os mais antigos dizem que as crianças já nasciam com um caldo de peixe, já pronto pra ir pro rio…”, sorri, com a metáfora transmitida há gerações. 

“A maioria do pessoal que trabalha de salva-vidas na praia hoje foi ensinado a nadar ali naquele rio. Não tem piscina aqui, a nossa é ali no rio. Era muita criança, muita gente mesmo, parecia uma praia. Todo final de semana, todo mundo ia para o rio brincar, olhar as crianças…hoje é só dentro de casa, coloca uma bacia no quintal para minha filha brincar na água”, prossegue.

“Só que isso acabou”, lamenta. “E trouxe um impacto pessoal também, além da contaminação do rio. Hoje você vai dizer a uma criança que não pode comer, é difícil para a gente. E ela não entende porquê. Tem um impacto psicológico nas nossas vidas. Antigamente a gente ia lá tomar um banho, andar de bote, pescar, passear mesmo, e isso foi tudo tirado de nós. As empresas não tentam resolver isso. Por isso a gente está na luta. Faz os nossos cânticos, as nossas orações. Eu tenho para mim que isso vai se resolver. Mas é difícil solucionar sozinho, sem a competência dos órgãos públicos. O juiz também precisa ser sensível ao caso”, depõe Alan. 

O mais incrível, salienta, é que, para além das tentativas de compensação financeira – por meio do Auxílio de Subsistência Emergencial (ASE), o programa de retomada econômica e as indenizações por danos morais e materiais, três pontos elencados na pauta de reivindicação da ocupação – não houve qualquer ação por parte das empresas criminosas para recuperar os rios contaminados, Piraquê-Açu e Comboios, no caso das aldeias indígenas. 

“Tem muito material pesado, que fica no fundo, não dá para a gente retirar, precisa de pessoal com competência para isso, mas as empresas nem os órgãos públicos fazem nada. De todos, o mais terrível que a gente vê é o arsênio. A gente não consome mais nada do rio nem do mangue, nem toma banho, nada, por causa disso”, descreve.

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Para os mais velhos, avalia, o impacto é ainda maior. “Meu sogro, quando vai no rio, até se emociona, chora, porque ele nasceu praticamente dentro do rio. Quando não estava coletando crustáceos, pegava taboa, e hoje, para ele, se não tiver alguém que coloca um ânimo, arriscado até de entrar em depressão, tão grande que é o sentimento de perda. É um luto, mesmo. Para nós na aldeia, o rio morreu. Dona Helena chora também, a avó da Daniele. Ela vê o rio e chora. Antigamente o sustento todo das famílias era dali, da aldeia toda. Caldo de peixe, moqueca de ostra, ameixa assada na brasa…”. 

Alan também endossa o sentimento da mulher sobre a importância da presença das crianças na ocupação. “Quero que minha filha veja esses movimentos como inspiração para estudar e poder lutar por seus direitos, trabalhar nos órgãos competentes, até. Hoje a gente não vê a ação deles, parecem coniventes com o erro. A gente fica até desacreditado de obter alguma informação deles, não sabe se é verdade o que falam para a gente. Pelo futuro da minha filha, eu quero que ela estude para ser inteligente e não burlada por essas leis que fazem hoje sem fundamento nenhum, tirando direitos dos indígenas”. 

Segue assim a mobilização. A condição para desocupação continua a mesma: retorno imediato do ASE e garantia de revisão dos demais pontos do acordo feito com a Fundação Renova há um ano, entre eles, o Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI), em que a recuperação do rio deve ser incluída.


‘O rio era nossa mãe’

Na semana em que dois anciãos pescadores morrem, a anciã D. Helena fortalece a luta com seu depoimento de vida no território


https://www.seculodiario.com.br/meio-ambiente/o-rio-era-nossa-mae

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