Padre Vitor Noronha traz a mensagem do encontro A Economia de Francisco: “os últimos precisam ser os primeiros”
Único capixaba a integrar a caravana de 96 brasileiros a participar do encontro “A Economia de Francisco”, idealizado pelo Papa Francisco, o Padre Vitor Cesar Zille Noronha traz da cidade italiana de Assis a mensagem central da proposta: o chamado para uma nova economia mundial, comprometida em preservar a vida e distribuir a riqueza de forma justa, tendo o cuidado com os mais necessitados como indicador de seu sucesso ou insucesso.
O encontro estava previsto para acontecer em 2020, mas por conta da pandemia de Covid-19, foi adiado, tendo sido realizado entre os dias 22 e 24 de setembro no Teatro Lyrick, na cidade italiana de Assis.
Jovem, formado em Economia e atuante em ações voltadas à justiça social, Padre Vitor Noronha foi um dos cerca de mil jovens economistas selecionados para o grande encontro. Os participantes foram divididos em três categorias: acadêmicos, empreendedores sociais (em geral em iniciativas de economia solidária, gestão mais comunitarista e organizações sociais) e militantes ou ativistas sociais.
Às vésperas das eleições estaduais e nacionais, Padre Vitor acredita que as escolhas a serem feitas neste domingo (2) pelos eleitores podem, sim, se guiar pelos ensinamentos propostos pela Economia de Francisco e Clara. “O elemento mais importante é votar contra a desigualdade. Isso é fundamental: votar contra a desigualdade, isto é, votar a favor dos pobres. Os últimos precisam ser os primeiros. Então que o nosso voto faça um processo bonito de inversão, o que não significa fazer com que os que têm muito hoje saiam de mãos vazias, não; significa que os bens criados, todas as coisas que existem, devem estar a serviço da vida humana e, de modo especial, a serviço daqueles que mais precisam”.
Na entrevista a seguir, o sacerdote mostra os sinais de onde essa nova economia já começa a florescer e porque ela é tão necessária para toda a humanidade.
No mundo atual, onde a semente dessa nova economia, de Francisco e Clara, já pode ser percebida?
Bebendo da fonte do Evangelho, eu vejo a Economia de Francisco e Clara como fermento na massa: é algo silencioso, pequeno, imperceptível…mas está ali produzindo, fazendo algo crescer. E na medida que a gente vai batendo na massa, vai trabalhando nela, a massa vai crescendo e a novidade aparece. Então eu compreendo que a economia de Francisco e Clara já está presente em todas as economias de resistência. As economias ameríndias do bem-viver; já está presente na agricultura familiar agroecológica, orgânica, por exemplo do MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores], do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra]; já está presente na economia solidária quando se criam circuitos de sobrevivência, mas ao mesmo tempo de vínculo de participação, de comunhão; está presente numa economia de comunhão; numa economia circular…mas esses atos que passam pela sobrevivência de tantas pessoas devem sim ser articulados, numa perspectiva de que essas economias localizadas se articulem, se unam e criem um processo global, social de transformação na construção de fato de uma nova economia. Eu acho que esse é o desafio. Então moral da história: eu vejo a Economia de Francisco e Clara em todas as economias que apontam para uma lógica além da lógica do capital; nas economias que geram vida, comunhão, participação, enfim, que saiam desse circuito.
Que ações você visualiza empreender a partir de agora, tendo a Economia da Vida como norte?
O nosso norte é o sul. A Economia de Francisco e Clara aponta para o sul, isto é, os países do sul que interpelam a opulência dos países do norte. Aponta para os pobres que interpelam a ganância dos ricos. Aponta para os excluídos que interpelam aqueles que são privilegiados por esse sistema. Eu acho que isso é fundamental como elemento constitutivo de todo o processo de inserção e participação. Isto é, aqueles que estão no mercado de trabalho, na Igreja, nos sindicatos, nos partidos políticos, e assim vai…precisam de se apropriar dessa diretriz hermenêutica, como diz Papa Francisco. Ele coloca três pontos que eu considero interessantíssimos: 1. partir da visão e da lógica dos pobres; 2) partir da visão e da lógica dos trabalhadores e do trabalho, trabalho digno para todos; 3) partir de uma lógica da encarnação, isto é, a coisa não pode ficar só numa ideia, não pode ser só coração e mente, ela também tem que ser mãos, tem que se fazer concreta. Eu acredito que esse é o processo, de estabelecer lógicas de economia, processos sociotransformadores que vão nessas três perspectivas.
O que você vai dar continuidade com o mesmo ou mais ânimo?
Primeiro lugar, um olhar de sensibilidade e proximidade. Por exemplo, estou coordenando a Pastoral Carcerária do Estado do Espírito Santo. Vou nas unidades prisionais. Vejo face a face os nossos irmãos encarcerados. E percebo que ali também existe uma economia de morte, da exclusão, de uma pena de vida que eles já foram condenados. E portanto vejo a grande dificuldade de um processo de reinserção, numa vivência da justiça restaurativa que seja de plenitude de fato. Vejo que, de fato, nesta economia atual, não tem espaço para todos, e de modo especial, não tem espaço para aqueles que vêm com um histórico de condenação, de discriminação, de realidades muito presentes de exclusão dos direitos mais básicos, como por exemplo o direito ao estudo. Grande parte da nossa população carcerária é de semianalfabetos, por exemplo, de baixíssimo grau de escolaridade. Grande parte deles vem de regiões periféricas, grande parte deles são negros, e portanto carregam os estigmas do racismo estrutural.
A Economia de Francisco e Clara aponta um processo de transformação voltado para a necessidade de organização, do cooperativismo, da reinserção, dos processos de produção, de associação…a gente precisa fortalecer essa lógica para ter alternativa de vida e renda para esses irmãos saídos do sistema carcerário. Mas ao mesmo tempo, tem que lutar para a transformação desse sistema econômico, de modo que haja espaço para todos e, de modo especial, para os últimos, isto é, que o dinheiro deixe de governar e passe a servir. Nesse sistema em que o Deus é o dinheiro, se exige sacrifício de vidas humanas e os irmãos encarcerados são os primeiros a pagarem por isso. Então de fato eu vejo total correlação entre a Economia de Francisco e Clara e o trabalho na Pastoral Carcerária, bem como na coordenação da Escola de Fé e Política. Não dá para compreender a Escola de Fé e Política sem compreender a conformação do sistema socioeconômico no qual nós estamos inseridos. Não dá para eu dizer ‘vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro’, que é pregar o Evangelho, sendo que, no nosso sistema econômico, o dinheiro é quem governa e não há espaço para Deus, no sentido de que não há espaço para aqueles nos quais Deus quis ser identificado, isto é, os pobres. Recorde Mateus 25: ‘tive fome, tive sede, tive frio, estava preso’. De fato um sistema que produz pessoas com fome, com sede, com frio, detentos, é um sistema que está distante de Deus, que não agrada a Deus. Porque como diriam os padres da Igreja, ‘a glória de Deus é o homem que vive’. Então de fato isso renova, anima o trabalho na Pastoral Carcerária, o trabalho na Escola de Fé e Política, e inclusive o trabalho na Paróquia, juntamente com o povo. Tudo isso me anima muito.
Qual o lugar da arte e da beleza nessa nova Economia?
Papa Francisco disse, na Carta em que ele convocou o encontro, que gostaria que essa Economia de Francisco e Clara fosse uma Economia para ‘re-almar’ a economia. E alma vem do latim ‘animus, dar força, ser um espírito novo, um ardor, um fervor, um respiro’. E eu acredito que a arte tem essa capacidade, de inspirar, transformar, a capacidade de sensibilizar. Então para mim foi muito proveitoso, por exemplo, durante o encontro, contemplar os afrescos de Giotto na Basílica de São Francisco de Assis, quando ele descreve artisticamente a vida de São Francisco, no momento em que ele faz o despojamento, entregando as roupas do pai, num rompimento com a lógica do capitalismo nascente. E, inserindo-me nessa espiritualidade, nessa vivência, foi contribuindo para que essa economia fosse crescendo, essa economia que de fato faz romper com uma lógica muito materialista, muito egoísta, muito autorreferenciada, muito centrada no lucro e na ganância, para uma lógica da partilha, da vida, da beleza, do encontro. Então de fato a arte pode nos ajudar nesse sentido, quando eu consigo contemplar fora aquilo que na verdade está dentro e quando eu consigo transcender através da arte. E a Economia de Francisco é um pouco isso, é transcender essa sociedade de miséria, de exclusão, de egoísmo, para um outro modelo, então a arte de fato pode contribuir muito nessa caminhada.
Como essa nova economia pode nos ajudar a escolher os melhores candidatos no próximo domingo?
Em relação às eleições de domingo, a Economia de Francisco e Clara também tem uma diretriz muito evidente. Como diz o Papa Francisco na Fratelli Tutti, que é a sua última encíclica, fizeram crer no dogma de fé neoliberal, de que o mercado resolveria todas as coisas e isso é uma grande bobagem. Isso gera idolatria, sacrifício humano, aumento da fome, da miséria, da desigualdade, como observamos hoje. Então eu acredito que o elemento mais importante é votar contra a desigualdade. Isso é fundamental: votar contra a desigualdade, isto é, votar a favor dos pobres. Os últimos precisam ser os primeiros. Então que o nosso voto faça um processo bonito de inversão, o que não significa fazer com que os que têm muito hoje saiam de mãos vazias, não; significa que os bens criados, todas as coisas que existem, devem estar a serviço da vida humana e, de modo especial, a serviço daqueles que mais precisam. A Economia de Francisco e Clara nos inspira uma economia do necessário, nos inspira uma economia de comunhão, uma economia de participação, uma economia de partilha. Então, que nós façamos um bom discernimento para votar nos projetos políticos que contribuem com este modelo econômico que há de vir, que está nascendo e que depende de nós para crescer.