Mesmo com pescado contaminado, Renova vinha impondo quitação geral dos danos para suspender pagamentos
Os primeiros relatos dos pagamentos começam a chegar nesta segunda-feira (3), como um grito de alívio em relação à garantia de sobrevivência material minimamente digna das famílias atingidas pelo crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce, que contaminou de forma crônica todas os ambientes aquáticos dulcícolas (Rio Doce e outros), estuarinos (Foz do Rio Doce) e marinhos.
“A notícia que a gente mais esperava!”, anunciou o pescador Alexandre Barbosa, de Barra do Riacho, em Aracruz, norte do Estado. “Sabemos que isso é fruto de muita luta e união”, agradece, citando o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública Estadual e da União, o Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo (Sindipesmes), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o deputado federal Helder Salomão (PT).
Integrante de uma comitiva que, junto com o MAB, se reuniu com o juiz Michael Avelar no dia 14 de setembro, o próprio Alexandre é um dos beneficiados pelo cumprimento da decisão do magistrado, que assumiu a 12ª Vara em meados deste ano, substituindo Mário de Paula Franco Junior, que foi transferido para o Amapá. “Como essas decisões saíram favoráveis para a gente agora, mesmo pra quem fez a quitação geral, eu liguei para a Renova informando que estou desbloqueando a minha conta e que posso receber meu retroativo e os [AFEs] mensais”, relata.
O desbloqueio de sua conta acontece quase um ano depois de tomada essa medida extrema. Quase um ano de intenso sofrimento dele e da esposa, também lesada pela quitação geral imposta pela Fundação Renova aos que se veem forçados a aceitar o acordo de indenização disponibilizado via Sistema Novel e mediante contratação de advogado particular, com desconto dos honorários.
Ludibriado pelo advogado que surgiu na comunidade vindo do Paraná, Alexandre foi enquadrado no Novel como pescador continental, cuja indenização definida pela Renova é menor que a de pescador de mar embarcado, com motor de popa. “Sempre fui do mar, desde os 13 anos de idade. Levei todos os documentos para provar, mas o advogado me colocou assim e ainda assinou a quitação geral em meu nome, sem nem me perguntar se eu queria”.
Quando percebeu os engodos, pediu retificação, sem sucesso. Bloquear a conta bancária foi a forma que encontrou para não receber os valores impostos pela Renova, já que eram incompatíveis com sua realidade. Ficou então, há quase um ano, sem indenização, sem lucro-cessante e auxílio emergencial.
Contra a esposa, também pescadora profissional, o que a Fundação fez foi simplesmente suspender o pagamento do auxílio, sem maiores explicações. “Mandamos a documentação, mas não voltou a pagar”.
Ficaram então os dois sem qualquer renda indenizatória, sem poder pescar, por conta da contaminação do pescado, já comprovada em juízo, e com os filhos para sustentar. “Começamos a pegar dinheiro emprestado com as pessoas, nos endividamos. Isso forçou a gente a procurar um advogado [para assinar o acordo pelo Novel] e eles forçaram a gente a assinar a quitação geral”, conta.
A falta de informações confiáveis sobre seus direitos perante a Justiça, associado à postura da própria Justiça até meados deste ano, avalia Alexandre, foram os dois principais vetores que levaram sofrimento a tantas famílias pescadoras. “Isso de ser forçada a fazer a quitação [como aconteceu com sua esposa], aconteceu com muita gente. A gente não tinha informações, as decisões da Justiça todas contrárias, ficamos com medo, tendo família para cuidar. Todo mundo com medo: ‘ou faz a quitação ou fica sem nada”, relata.
E lá se vão sete anos, completados no próximo dia cinco de novembro. Toda uma geração que nasce em famílias pesqueiras que não podem pescar e que perdem muito mais do que o sustento financeiro e material. “A nossa cultura foi toda embora”, disse o presidente do Sindipesmes, João Carlos Gomes da Fonseca, o “Lambisgoia”, quando da divulgação do relatório da Aecom do Brasil sobre a falta de segurança no consumo do pescado em toda a região atingida pelos rejeitos de mineração, consideradas no escopo do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC).
“Mudou a vida da gente. Volta e meia lembra da vida que a gente tinha…uma das coisas mais importantes da vida da gente, é ter a mente tranquila. A vida de muitos pescadores se transformou em um pesadelo. O pescador está acostumado a lidar com outras situações, com a natureza, com as pessoas. Essas coisas de justiça são muito novas. “Passamos ‘um pedaço’ na vida, que ‘Nossa Senhora’!”, concorda Alexandre Barbosa.
A contração das Assessorias Técnicas Independentes (ATIs), como previsto no TAC-Gov, homologado desde 2018, “teria evitado muito sofrimento” como este. Mas esse é um ponto ainda não providenciado pela Justiça Federal.
O caso agora é cuidado por um novo Tribunal Regional Federal, o da Sexta Região (TRF-6), instalado em meados de agosto, sendo por enquanto sua atribuição exclusiva. Após o insucesso da repactuação conduzida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), anunciado no início de setembro, os governos dos estados do Espírito Santo e Minas Gerais têm retomado ações que haviam sido paralisadas em função dos acordos extrajudiciais firmados com a Renova e suas mantenedoras, as mineradoras Samarco, Vale e BHP Billiton, responsáveis pelo rompimento criminoso da Barragem de Fundão, em Mariana/MG.
Há uma semana, os entes peticionaram o bloqueio de R$ 10 bilhões das contas da Vale e BHP Billiton para garantir a inclusão das comunidades do litoral norte do Estado nos programas de reparação e compensação de danos já aplicados em outras regiões atingidas.
No próximo dia 18, uma audiência com o juiz Michael Avelar, vai tratar do pedido da PGE capixaba de integrar o polo ativo da ação civil pública de R$ 155 bilhões impetrada pelo MPF em 2016