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Devastação ambiental do Alphaville continua, denunciam moradores

Obras nas Três Praias seguem sem anuência do CEC e empreendedor não pediu perícia sobre incêndio, suspeito de ser criminoso

Divulgação/CEC

Continua a todo vapor a degradação ambiental para construção do Alphaville Três Praias Residencial, em Guarapari. O repúdio vem de moradores que observam o avanço da derrubada da vegetação, após seguidas explosões das pedreiras do promontório onde o empreendimento quer se instalar, e corrobora o vasto documental produzido pela Câmara de Patrimônio Ecológico, Natural e Paisagístico do Conselho Estadual de Cultura (CPENP/CEC), o único colegiado, até o momento, a denunciar a prática predatória do empreendimento e tentar impedir sua continuidade nesses moldes. 

“Um corretor de imóveis de Guarapari disse, recentemente, que só estão retirando a vegetação rasteira de lá. Mas o que a gente vê não é isso”, critica o jornalista Fábio Ramos, morador de Jardim Boa Vista, bairro vizinho às Três Praias, mostrando uma foto que circula nos grupos de WhatsApp locais, onde o verde foi todo retirado de uma vasta área, à exceção de uma estreita faixa que separa o aparente futuro canteiro de obras da linha da praia e dos olhares externos.

“Explosões, muita poeira, muito barulho. Os moradores estão assustados, sem serem avisados de nada”, prossegue Fábio, referindo-se a um processo que sucedeu o incêndio de 45 mil metros quadrados ocorrido em maio, justamente na área que o CEC não concedeu anuência para desmate.

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“Foram retiradas muitas pedras e a mata já está praticamente toda devastada”, concorda o historiador José Amaral Filho, morador do Rio Calçado, na zona rural do município. O pior, acrescenta, é que o processo predatório do residencial tem sido seguido por outros empreendimentos imobiliários. “Está incentivando a devastação no entorno, estão se aproveitando que o licenciamento do Alphaville ocorre dessa forma e correm para fazer o mesmo”. E o próprio Alphaville, avalia, é resultado de um processo histórico de devastação em várias partes do município. “Escrevo sobre Guarapari há mais de vinte anos e vejo que a destruição da cidade sempre teve como pano de fundo a especulação imobiliária”. 

Alguns desses grandes empreendimentos, salienta, tentam se justificar alegando um déficit habitacional. “Recentemente, um empreendimento na Bacutia disse isso numa audiência pública. Mentira! A Praia do Morro, por exemplo, a gente chama de Praia dos Porteiros. Nessa época do ano, fora do verão, a maioria dos prédios está vazio, só com os porteiros trabalhando. Só os imóveis desocupados na Praia do Morro resolveriam qualquer déficit de moradia. Não existe déficit habitacional em Guarapari. o que existe é uma especulação imobiliária terrível, que faz com que o pobre more embaixo da ponte e o rico vai tomando cada dia mais o espaço do pobre”. 

No tocante à luta de classes, Fábio menciona a limitação do acesso da população à praia. “Nosso medo também é perder o acesso. Já é ruim e tende a piorar. No século XXI que a gente vive, ainda existir isso de fechar praia, não dá para entender”, lamenta. 

Distopia de luxo?

A observação da insistente devastação ambiental provocada pelo Alphaville Três Praias Residencial e a segregação social a ela associada suscitam conexões entre o modus operandi do empreendimento e a crítica social feita na obra cinematográfica de 1965 de Jean-Luc Godard. Um dos clássicos do diretor francês, o filme foi, muito provavelmente, a primeira produção humana a batizar um residencial (fictício e futurista, na película) com o nome de Alphaville (junção de “alpha”, a primeira letra do alfabeto grego, com “ville”, de cidade ou vila). 

Na crítica de arte publicada há dois anos no jornal Estadão, a pesquisadora do Centro Universitário do Estado do Pará e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Cesupa/CNPq) Juliana Fonseca Pontes, lembrou que, no filme de Godard, “Alphaville é uma cidade descolada do tempo e do espaço que vive sob o jugo do supercomputador Alpha 60”, máquina que “gerencia os destinos dos cidadãos”, com objetivo de implementar “um regime totalitário governado pela técnica”. Nela, o lema “‘silêncio/lógica/segurança/prudência’ é acompanhado da cassação do direito dos sujeitos de sentir: não podem chorar, sofrer, amar ou se comportar de modo espontâneo”.

Uma década depois do lançamento do clássico francês, dois arquitetos trouxeram para São Paulo a primeira experiência concreta no Brasil, criando o primeiro condomínio batizado com esse nome, tornando-se referência em residenciais de luxo. Desde então, vários Alphavilles se proliferaram no país, incluindo no Espírito Santo, geralmente com algum complemento na denominação, para regionalizar a experiência, mas sempre, marcada pelo luxo das instalações e uma pequena distância dos grandes centros urbanos, facilmente vencida (pelo menos é essa a proposta) em viagens de carro pelos moradores. 

No caso capixaba das Três Praias, o “silêncio” do lema apontado pela pesquisadora no artigo do Estadão se dá na tentativa dos órgãos responsáveis – Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema) nas duas primeiras etapas do licenciamento e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Agricultura (Semmag) e a promotoria do Ministério Público Estadual de Guarapari na terceira – de silenciarem a legislação federal que protege a Mata Atlântica. A “lógica”, é a da especulação imobiliária predatória e desumanizada, que predomina no motor de crescimento urbano desordenado da cidade, conforme observa o historiador e morador ouvido no início da matéria. A “segurança” é visível nos altos muros e cercas elétricas que caracterizam os Alphavilles espalhados pelo país. Já a “prudência”, a reportagem identifica na atuação persistente do CEC em busca do respeito da legislação de proteção do patrimônio natural. 

Pericia não foi realizada

Na última manifestação formal do colegiado sobre o caso, em julho, foram mostradas evidências de terraplanagem na área não anuída pelo conselho e, novamente, solicitada a realização de perícia para identificar as causas do grande incêndio de maio, visto que o empreendedor, estranhamente, não fez o pedido, apesar do laudo do Corpo de Bombeiros indicar fortes indícios de tratar-se de incêndio criminoso. 

“Segundo o Boletim Unificado dos Bombeiros, o próprio empreendedor acionou os bombeiros, porém, curiosamente, não solicitou a realização de Perícia para investigação da origem do incêndio. Dado que chama atenção, sendo que os Bombeiros chegaram a encaminhar ofício à Polícia Civil alertando para os fortes indícios de incêndio criminoso, danos à integridade física, à vida das pessoas, e ao patrimônio. As proporções do incêndio foram tão grandes, por conta da Floresta no local, que o combate ao fogo durou sete horas, segundo os bombeiros”, reforça o documento.

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