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‘Única instituição que não me reconheceu foi a minha própria’, diz Ethel Maciel

Reitores relatam violências políticas sofridas antes, durante e após eleição e não nomeação por Bolsonaro

Tati Hauer

Em primeira pessoa, mais de 20 reitores relatam as variadas formas de violência política e invisibilização sofridas antes, durante e após terem sido eleitos e não nomeados por Jair Bolsonaro (PL). Esse é o tom das mais de 400 páginas do livro Intervenções nas instituições federais de ensino, que terá pré-lançamento nesta quarta-feira (26), no canal do YouTube do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes). 

Um dos relatos vem da professora Ethel Maciel, eleita pela comunidade universitária em 2019 – quando era vice-reitora da gestão de Reinaldo Centoducatti – mas preterida pelo presidente da República, que nomeou Paulo Vargas para o cargo máximo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). 

“O ato do presidente foi ruim, mas talvez pior tenha sido o das pessoas que assumiram aqui, sem nenhum pudor, e tentando me invisibilizar a todo momento, como se eu não tivesse sido eleita. O Paulo não teria nem voto se eu não tivesse dividido meus votos com ele, naquela estratégia que fomos montando, quando vimos que o presidente não estava respeitando as eleições em outras universidades”, dispara Ethel Maciel. 

A reitora conta que, na época, nem todas as peças estavam postas, elas só foram se encaixando e montando o quebra-cabeça tempos depois. As ações, recorda, foram orquestradas por um assessor do Ministério da Educação, Ricardo da Costa, que veio até a Ufes se reunir com Paulo Vargas antes da nomeação. Apesar de ambos negarem o conteúdo da reunião, uma gravação apresentada ao Conselho Universitário posteriormente revela a afirmação de Paulo de que ele havia sido indicado para a reitoria pelo MEC. 

O assessor agente da intervenção, salienta, foi homenageado juntamente com o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) no dia 1º de julho último, com a Medalha Biblioteca Nacional. Historicamente concedida a acadêmicos, autoridades e intelectuais que contribuem com a literatura e a democracia, a honraria foi descaracterizada esse ano, ao ser entregue a mais de vinte pessoas sem relação legítima com a causa, entre elas a primeira-dama Michele Bolsonaro, e o próprio presidente da República. “Ele também foi homenageado por não se sabe o quê. Apareceu na primeira página do site da Ufes. Depois de muitas críticas e questionamentos, foi retirada da página”, relata Ethel. 

Outros episódios são narrados no capítulo capixaba, com nomes e datas que se conectam para “desenhar” como a violência política atuou na Ufes. “Não aconteceu de uma vez a derrocada. Foram episódios de muita misoginia, violência política e invisibilização. As mudanças que eu tinha proposto, as pessoas que eu havia convidado…quando o Paulo assume, nem liga para as pessoas, como se nada que eu tivesse feito tivesse existido. A tentativa de invisibilização foi tão completa, que é até difícil de falar. Ver as negociações por cargos. Eles agiram como se fosse absolutamente normal!!”, pontua. 

Outro indicador das ações sistematizadas de invisibilização dos eleitos, conta Ethel, é a falta de reconhecimento da Ufes sobre o trabalho desenvolvido por ela e outros professores na orientação das políticas públicas do governo do Estado durante a pandemia e toda a sua produção científica e contribuições para explicar os temas duros da epidemiologia para a população por meio de lives, palestras e reuniões com governos, sindicatos, legislativos e jornais de todo o país, além da participação no Comitê para construção do Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19. 

“Durante esses dois anos da pandemia, eu ganhei muitas comendas, medalhas, títulos. A única instituição que não me reconheceu foi a minha própria. Isso é um fato concreto sobre a tentativa de invisibilização do meu nome. É uma violência inexplicável”. 

‘Desenhando o funil’

Um dos organizadores do livro, o reitor eleito e não nomeado da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), em Santa Catarina, Anderson André Genro Alves Ribeiro, conta que a ideia do livro surgiu durante a produção da obra lançada há um mês pela Associação dos Docentes da Ufes (Adufes) “A Invenção da Balbúrdia”, sobre intervenções do governo federal nas universidades, em dois institutos federais e no Cefet do Rio de Janeiro. 

“O nosso vem complementar o da Adufes, trazendo relatos em primeira pessoa dos reitores”, compara. Anderson reconhece que o livro “desenha” como o governo federal tem imposto um “funil” no acesso e permanência de estudantes nas universidades e institutos federais, numa tentativa deliberada de retroceder o processo de inserção de populações historicamente marginalizadas do ensino superior. 

“A gente mostra que todas essas ações que vimos no governo Bolsonaro não são aleatórias, desconexas. A intenção é atacar o lugar da universidade, a legitimidade social que ela tem, como algo que possibilita uma ascensão socioeconômica. A população tem esse imaginário e o que eles fazem é atacar esse imaginário, dizendo que não, não é melhoria da condição socioeconômia, não é produção de ciência, que é lugar de balbúrdia, de consumo de drogas, de orgias. O governo Bolsonaro vem com uma clara disposição ideológica de destruir o ensino superior público, gratuito e de qualidade, em três âmbitos: orçamentário; simbólico e de gestão”. 

No primeiro capítulo do livro, antes dos relatos dos mais de vinte reitores, ele e sua vice eleita na UFFS, Lisia Ferreira, contam um sucinto histórico do ensino superior no Brasil, mostrando o movimento de democratização após a Ditadura Militar, a intensa privatização durante Fernando Henrique Cardoso, a expansão e inclusão durante Lula e Dilma, e os novos ataques por uma “reelitização”, com Bolsonaro. 

Em meio ao relato, transcrições de falas de seus ministros da Educação. Primeiro, Ricardo Velez Rodriguez, ao defender que “as universidades devem ficar reservadas para uma elite intelectual”, e que “a ideia de universidade para todos não existe”. Falas seguidas de uma estrangulação orçamentária voltada a afastar o estudante que não tem recurso, que depende de uma bolsa de estudos, de um programa de permanência, residência universitária, alimentação. 

O segundo, Abrahan Weintraub, ameaça cortar as verbas de universidades como as de Brasília, Fluminense e Bahia (UnB, UFF e UFBA). “Dizia que as universidades tinham plantações de maconha e queria cobrar mensalidade dos estudantes”, cita Anderson. 

Sob Weintraub, o MEC executou um corte de 50% do orçamento da Coordenação de Aperfeiçoamento da Pessoal de Nível Superior (Capes) voltado para pesquisa científica e lançou o “Future-se”, programa em que as universidades poderiam aderir para financiamento de suas atividades, mas para isso deveriam buscar esses recursos no mercado financeiro, com ações a serem negociadas. Também tentou emplacar a gestão das universidades, pelas polêmicas Organizações Sociais (OSs), que são alvos de muitas denúncias de irregularidades e enriquecimento, na atuação em hospitais públicos. 

Mais recentemente, Milton Ribeiro foi preso pela Polícia Federal por envolvimento num esquema de favorecimento de Igrejas com recursos do ministério, inclusive com pagamentos em barras de ouro. “Milton Ribeiro dizia que a universidade deveria ser para poucos, porque tem muito advogado e engenheiro dirigindo Uber, mas que se fosse mão de obra menos qualificada, conseguiria emprego mais fácil”, cita Anderson. Postura que busca retomar a visão elitista que sempre prevaleceu sobre o assunto. A primeira universidade brasileira, exemplifica, foi criada em 1920, enquanto no Peru o mesmo aconteceu quase quatro séculos antes, em 1551. “Os filhos dos ricos iam para a Europa estudar”. 

Legislação 

Comparando o governo de Bolsonaro com os do PT que o antecederam, o livro fala sobre o crescimento do número de campi de institutos e universidades federais em todo o país e como a gestão foi sendo normatizada de forma mais democrática. 

“A legislação sobre nomeação de reitores nos Institutos Federais é mais contemporânea, do governo Lula, e não prevê a lista tríplice criada em 1968, já no regime militar”, diz citando, respectivamente, as Leis 11.892/2008 e 5.540/1968. 

Lula e Dilma, resume, atuaram em duas frentes principais: ampliando a oferta de matrículas na rede pública, principalmente através do Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni); e facilitando o acesso à rede privada, através do Programa Universidade para Todos (Prouni) e do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). “A rede privada detém cerca de 60% das matrículas do ensino superior, por isso é importante, ainda, que os estudantes de escolas públicas também tenham acesso à rede privada de ensino superior. Quem consegue acessar com mais facilidade o ensino superior, ainda é quem estuda no ensino médio privado”, lamenta.

Há também a Lei de Cotas de Dilma Roussef que garante 50% das vagas para estudantes oriundos de escolas públicas. “É um percentual até conservador”, avalia Anderson, considerando que 80% dos estudantes de ensino médio estudam em escolas públicas. Na sua UFFS, orgulha-se, a Lei de Cotas garante 90% das vagas para esse público. 

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