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Finda a noite de quatro anos, recolher os cacos e reconstruir

Um país que vinha numa curva ascendente de compreensão da liberdade existencial de seu povo e mergulhou num abismo de moralismos hipócritas, religiosismo farisaico e desrespeito à liberdade mais elementar – aquela que possibilita a existência do ser livre e independente -, precisa de um tempo para se reestabelecer, até consigo mesmo, para iniciar a reconstrução.

Por isso, nesses dois meses de transição, a palavra de ordem, aqui embaixo, é respirar longa e profundamente, não provocar nem aceitar provocação, se preparando para a reconstrução intelectual deste país.

A noção de “animal político” em Aristóteles nos ilustra a necessidade de cada um se sentir inserido e de pertencer a um grupo macro de pessoas, ou do que chamamos de sociedade. Participar de forma cidadã de ações políticas e sociais, tem por finalidade a busca pelo bem, que é comum a todos e a si mesmo.

A visão do filósofo traz a reflexão da necessidade, da sociedade como um todo, estar sensível ao diferente, ao diferenciado dos conjuntos hegemônicos de comportamentos, afinal, continuando na compreensão antiga, agora trazendo Parmênides para a conversa: o ser é! Ou seja, se ele existe, seja do jeito que for, não tem mais jeito, precisa ser aceito e se sentir pertencente.

Não obstante a propagação de ideologias classificadoras do ser, o bom homem, o cristão, o educado, civilizado, etc., o direito de escolhas, como atributo humano, precisa estar, acima até mesmo da propriedade, contrariando o que nos ensina Thomas Hobbes. Sendo assim, a liberdade de ser, o elemento principal a ser defendido pelo Estado, uma vez que não existirá propriedade sem a existência plena do proprietário ou proprietária.

Talvez estes sejam os maiores desafios a serem enfrentados pelo novo governo, no processo de reestabelecimento da compreensão humana. Naturalmente será uma tarefa árdua, tendo em vista que o discurso ideológico do atual governo afetou um contingente de quase metade da população, que no fundo, quer uma sociedade de aparência e enganação, onde o “belo” e “harmônico” é a regra, e o resto desvio.

As pautas mais significativas, como os novos arranjos familiares, a descriminalização do aborto e do uso da maconha, serão certamente as mais complicadas de serem tocadas nas lutas populares, porque ferem frontalmente esta ideologia falsa da sociedade perfeita.

Muitas questões trabalhadas pelo atual governo, insuflando o ódio, a vingança, o revanchismo e o ressentimento, darão muito trabalho para a visão do novo governo, em especial para a construção de uma política urgente de desencarceramento e redução da “criminalização da pobreza e da miséria” nas periferias e do povo preto dali.

É preciso considerar que este trabalho deve acontecer em dois vieses, por vias institucionais com formulações legais, políticas públicas, etc. que sabemos: enfrentará uma grande resistência no novo Congresso Nacional e também nas formações populares.

Com o “modismo” que essa direita construiu, eu poderia dizer que a atuação na formação popular precisa ser orquestrada e incrementada para que as mudanças tenham significação mais abrangente na sociedade, podendo assim enfrentar as resistências desta “nova direita”, barulhenta e violenta, da qual teremos que aprender a conviver sempre com resistência e luta, mas que neste momento, é preciso recolhê-la ao seu devido lugar de pensamento minoritário em nossa sociedade.

Everaldo Barreto é professor de Filosofia

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