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Indígenas e quilombolas capixabas defendem ‘energia limpa e dialogada com os povos’

Posição contrasta com Plano de Descarbonização do ES, pautado por interesses econômicos dos grandes poluidores

A defesa de uma nova lógica de produção de energia, que respeite as comunidades tradicionais e mais vulneráveis, foi o tom da mesa redonda em que participaram representantes capixabas de povos indígenas e quilombolas, na programação do Brazil Climate Action Hub, durante a 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-27), que acontece no Egito entre seis e 18 de novembro. 
Na mesa “Racismo Energético e Ambiental – Soluções a partir da Transição Energética Justa, Popular e Inclusiva”, promovida por representantes da Coalizão Energia Limpa – transição justa e livre do gás, os participantes afirmaram que o respeito às comunidades tradicionais deve envolver desde o processo de instalação dos grandes projetos de energia – parques eólicos, linhões de transmissão – até o acesso desses povos a fontes renováveis que ainda possuem custo elevado, como a fotovoltaica.
A Coalizão é formada por um grupo de organizações da sociedade civil brasileira comprometido com a defesa de uma transição energética socialmente justa e ambientalmente sustentável no Brasil. Ela tem como objetivo excluir o uso do gás como fonte na matriz energética até 2050. Fazem parte as organizações: ClimaInfo, Instituto Internacional Arayara, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto de Energia e Meio Ambiente (Iema), Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e Instituto Pólis.
Um dos convidados do debate foi Paulo Tupinikim, liderança indígena em Caieiras Velha, em Aracruz, norte do Estado, e coordenador geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), que ressaltou a necessidade de diálogo.

Reprodução

“Precisamos de uma energia limpa? Precisamos. Mas uma energia que de fato seja limpa e que seja dialogada, discutida com as populações indígenas. A audiência pública não é consulta. Consulta que nós indígenas entendemos é aquela que está estabelecida no artigo 6º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho [OIT], que é livre, prévia e informada. E tem que ser de acordo com os nossos protocolos de consulta. Se querem consultar para levarem energia limpa para a população e nós, os afetados, termos acesso a essa energia limpa, então nos consultem”, afirmou Paulo Tupinikim. 

Sobre a falta de acesso, Paulo citou a situação dos indígenas do nordeste brasileiro. “A crise hídrica que vivemos, por exemplo, fez com que aumentasse a tarifa de energia para toda a população brasileira. Imaginem, então, a nossa situação: povos indígenas e nordestinos, que vivem em um lugar de extrema seca, onde falta água até para fazer comida, tomar banho e beber, vivendo no semiárido brasileiro e ainda faltar energia nas nossas casas?”, questionou. 

A respeito dos impactos negativos de chamadas energias limpas, o coordenador geral da Apoinme contou a sua experiência ao visitar uma usina de energia eólica no Rio Grande do Norte, próximo às terras de parentes potiguares. “Os ‘grandes cataventos’ se sobrepõem a um território indígena que, infelizmente, ainda não está demarcado. E não há sequer um diálogo, uma troca de informações sobre os impactos e prejuízos que essa geração de energia está causando para aquele território. O mais triste é a falta de água que aquele povo vive na região, mesmo com aquele empreendimento enorme colocado ali, praticamente dentro do seu território. Precisamos de energia limpa, mas que de fato seja limpa, além de dialogada e discutida com as populações indígenas”, lamentou.

Sobre os impactos desses grandes projetos, Katia Penha, liderança quilombola no Sapê do Norte, também no norte do Estado, e coordenadora nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Katia Penha, falou sobre o grande número de territórios quilombolas afetados no Brasil. 

“Temos mais de 500 territórios impactados por linha de transmissão, mais de 57 territórios quilombolas impactados pela energia eólica, mais de 25 territórios por construções do Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social [PSH]. Além disso, há muitas irregularidades, como descumprimento de normativas, errônea separação entre área habitada e não habitada pelas comunidades e equívocos na caracterização da organização sociocultural das comunidades quilombolas. As consequências são conflitos com riscos à vida e à segurança de defensores quilombolas do meio ambiente e do território”, disse Katia Penha, acrescentando que a geração de energia é necessária, mas deve-se lembrar que não existe energia sem impacto. 

Coordenadora-executiva da Conaq, Celia Pinto trouxe como exemplo a comunidade quilombola do Cumbe, em Aracati, no Ceará, que sofre com os impactos de um parque eólico dentro de seu território. “Os problemas impostos à comunidade do Cumbe atingem, inclusive, o direito de ir e vir dos nativos, com a impossibilidade dos pescadores artesanais de acessar o mar por dentro do território para pescar. Outro problema grave é o barulho dos aerogeradores, que funcionam dia e noite, sem um minuto de silêncio sequer”, ressaltou. 

Coordenador executivo da Frente por uma Nova Política Energética para o Brasil, Joilson Costa, ressaltou ainda que, apesar da matriz brasileira elétrica ser majoritariamente renovável, é necessário caminhar mais rapidamente na direção de uma transição energética que seja mais justa, popular e inclusiva. E que essa transição não é meramente uma mudança de combustíveis fósseis para fontes renováveis. Essa mudança tem que ser baseada nesses princípios e que atenda a todos os setores da sociedade, sem provocar violações de direitos, injustiças ambientais, sociais e energéticas, incluindo a participação popular.

Lógica empresarial

O contraste entre a lógica empresarial e a lógica socioambiental que coexistem hoje no planeta e é exposto nos diferentes espaços da COP-27 – o Brazil Climate Action Hub se propõe a visibilizar demandas dos povos tradicionais e da sociedade civil organizada, contrapondo o lobby da indústria fóssil e outras inimigas do clima – também ocorre em âmbito estadual.

O Espírito Santo, por exemplo, se faz presente por meio das lideranças indígenas, quilombolas, mas também por meio da liderança do governador Renato Casagrande (PSB) como coordenador da Coalizão Governadores pelo Clima (GPC) e presidente do Consórcio Brasil Verde. 

Criada na COP passada, em Glasgow, na Escócia, como forma de alavancar iniciativas dos estados frente aos retrocessos ambientais do governo federal, a Coalizão se mantém, mesmo com a derrota do atual presidente, agora com o intuito de se somar aos esforços em favor do clima que, se espera, passem a emanar de Brasília a partir de 2023, bem como de países europeus que já anunciaram interesse em retomar os fundos internacionais de combate ao desmatamento e proteção da Amazônia, na gestão do presidente eleito Lula (PT). 

O lançamento internacional do Consórcio aconteceu nesta quinta-feira (10), com Casagrande participando de forma virtual. A previsão é que ele chegue no Egito na noite deste sábado (12), lá permanecendo até o dia 18.

Divulgação/Governo ES

Para além dos arranjos dos estados no âmbito da Coalizão e do Consórcio, há os compromissos individuais. “O Consórcio Brasil Verde poderá assessorar os Estados em seus projetos e programas de mitigação. Nós, Espírito Santo, assinamos o Race to Zero e estamos elaborando um programa de descarbonização. Agora caberá ao Consórcio a articulação para que cada Estado tenha seu plano. Primeiro temos que fazer um trabalho para dentro de cada Estado, para que possamos fazer nossa tarefa de casa. Desta forma, podemos ter um posicionamento firme e cobrar o Governo Federal”, disse Casagrande no lançamento. 

O Plano de Descarbonização, em elaboração, é norteado pela lógica empresarial do mercado de carbono e, não se sabe ainda, se conseguirá incorporar aspectos mais alinhados com a proteção da sociobiodiversidade defendida por povos e comunidades tradicionais. 

Segundo o coordenador de projetos da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama), Robson Sarmento, o Espírito Santo se comprometeu, em 2021, com a redução de suas emissões líquidas de gases de efeito estufa (GEEs) – diferença entre o volume emitido e o volume de carbono sequestrado por reflorestamento – em 50% até 2030 e em 100% até 2050. 

A primeira etapa do plano de descarbonização, afirma Robson Sarmento, já contempla uma atualização do inventário de fontes de GEEs e as diretrizes gerais. Questionado sobre medidas mais incisivas de redução de emissões por fontes importantes, como a siderurgia – que responde por 31% de todas as emissões do Estado –, o coordenador afirma que, nesse momento, o plano visa as oportunidades no mercado de carbono, para compensar volumes que não tendem a ser reduzidos voluntariamente pelos setores econômicos. 

“Nem todos os setores vão conseguir zerar suas emissões, não têm capacidade econômica para isso. Por isso a recuperação de cobertura florestal”, argumenta, destacando o projeto Florestas Mais Produtivas dentro do Programa Reflorestar, que já se iniciou na região do Caparaó.

As reduções de emissões por fontes importantes como a siderurgia, nesse momento, “dependem muito mais de fatores econômicos que quaisquer outros”, reconhece. “A estratégia de enfrentamentos das questões climáticas por conta das emissões de carbono não é uma estratégia centrada exclusivamente no comando e controle. Ela tem foco muito mais acentuado nas estratégias econômica ou seja reduzir as emissões até o limite economicamente viável e incentivar a compra e venda de carbono entre os polos que sequestram e emitem”.

Súplica indígena

No futuro, porém, é possível que os pleitos defendidos em espaços como o Brazil Climate Action Hub ganhem mais relevo. A depender, claro, da pressão da sociedade nesse sentido, em direção ao chamado “mercado de carbono”. Um respaldo importante para essa mudança de tom já existe, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) da Onu, dos quais o Espírito Santo também é signatário.

“Toda vez que se registra um projeto de sequestro carbono, é preciso identificar quais ODS ele impacta positiva ou negativamente. À medida que o mercado de carbono se consolida, existe a tendência que favoreça mais os ODS. No médio e longo prazo a tendência é que estratégias que tenham menor incidência positiva sobre os ODS recebam valores mais baixos e tenham capacidade de venda menor também”, explana.

Hoje, diz, já há uma diferenciação. “Projetos que atendem às ODS de biodiversidade e comunidades tradicionais já são mais valorizados. A tonelada de carbono no mercado europeu, por exemplo, mais alinhada com esses ODS, vale seis vezes mais que o brasileiro”.

Que mesmo o mercado, então, de alguma forma, consiga se aproximar da lógica indígena e ir além de contas rasas de toneladas e preços. Que a súplica de Paulo Tupinikim seja atendida e se expanda pelo globo, a partir do estado do Espírito Santo: “que nós possamos lutar por um Brasil melhor e pela defesa da nossa Mãe Terra que está sofrendo e está morrendo”.

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