“Era um lugar sagrado”, lamenta moradora da aldeia indígena de Pau Brasil sobre a Praia da Água Boa, onde porto é construído
A ocupação da Ferrovia Vitória-Minas no trecho que atravessa a Terra Indígena Comboios, por aldeias Tupinikim, durante 43 dias em setembro e outubro passados, tem provocado desdobramentos para além do objetivo específico, que era a revisão do acordo de reparação e compensação dos danos provocados pelo crime da Samarco/Vale-BHP contra as comunidades indígenas de Aracruz, no norte do Estado.
A grande mobilização Tupinikim foi vitoriosa ao que se propunha: a Fundação Renova foi retirada das negociações, por estar totalmente desacreditada de cumprir as funções para as quais foi criada; a Vale retomou o pagamento do Auxílio Financeiro Emergencial para as famílias impactadas; e uma audiência judicial no dia 1º de dezembro, em Belo Horizonte, tratará dos demais pontos reivindicados na revisão do acordo que havia sido – forçadamente, afirmam as comunidades – assinado com a Renova há um ano.
E, para além dessas conquistas, tem levado outras grandes empresas da região a ficarem em dia com as condicionantes de licenciamentos ambientais de grandes obras que impactam as aldeias indígenas, segundo percepção das próprias comunidades.
As Terras Indígenas e seu entorno possuem 39 grandes empreendimentos instalados, que integram um Fórum coordenado pelo Ministério Público Federal (MPF) voltado a garantir o cumprimento da legislação que protege os direitos socioambientais dos povos tradicionais afetados por obras de grande porte, como indústrias e portos, que caracterizam a região. Até o momento, no entanto, nenhum deles entregou sequer o produto primordial, que é o Estudo de Componente Indígena (ECI) ou Plano Básico Ambiental Indígena (PBAI). A Vale chegou a apresentar um PBAI em 2017, mas que não foi concluído.
“A Jurong ainda não entregou o ECI e já construiu dois navios, pelo que a gente viu. A Vale disse que vai fazer o PBAI pela ferrovia. A Imetame nos chamou para apresentar o que já fez do ECI. A Suzano também tem que entregar o PBAI, referente ao Canal Caboclo Bernardo. E quem não entregou ou não se manifestou ainda, vai ser cobrado”, afirma o Cacique Toninho, da Aldeia Comboios.
No caso da Imetame, o licenciamento ambiental da primeira fase do porto, antes da expansão, foi marcado por grandes polêmicas, incluindo a autorização dada pelo Conselho Regional de Meio Ambiente (Conrema) para desmatamento de 11 mil hectares de restinga em 2014.
Durante a expansão, continuaram os atropelos socioambientais, vide o que foi decidido em relação à Barra do Riacho. A comunidade, originalmente pesqueira, perde, ano após ano, empreendimento após empreendimento, seus locais de pesca e de lazer, e sofre cargas cada vez maiores de poluição de toda ordem, sem receber nem mesmo incremento de empregos nos grandes empreendimentos que a cercam.
Protocolo de consulta
Em relação à TI Comboios, o Cacique Toninho conta que os estudos identificaram vários impactos, mas as obras começaram antes que qualquer um deles fosse reparado ou compensado. “A Imetame apoia algumas ações sociais, que é o mínimo, mas tem pouca participação na subsistência da comunidade. Ela quer dar capacitação aos indígenas em empregabilidade, mas isso é em logo prazo”.
Por ocasião do ECI da Imetame, cinco aldeias Tupinikim se reuniram e verificaram que os estudos apresentados, feitos em 2016, estão desatualizados. “As informações estão defasadas. A gente não aceitou fazer como está. Vamos realizar uma assembleia geral das aldeias e definir como deve ser dada continuidade aos estudos para construir o PBAI”, relata Toninho.
Em paralelo, as comunidades também decidiram retomar a construção do “protocolo de consulta” com base na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A normativa internacional, da qual o Brasil é signatário, determina que empreendimentos que possam impactar territórios de comunidades e povos tradicionais só podem iniciar o processo de licenciamento depois de uma “consulta livre, prévia, informada e de boa-fé” junto aos moradores. E cada território deve, preferencialmente, estabelecer seu próprio protocolo de consulta, detalhando como precisa ser feita para atender à OIT 169.
Uma das pendências de compensação da Imetame, destaca o cacique, é a perda da Praia da Boa Água pela aldeia de Pau Brasil. “Pau Brasil perdeu sua praia. Uma mata linda, uma praia linda. Com a chegada do porto, a Imetame pegou aquele espaço”, lamenta.
Perda irreparável
Moradora de Pau Brasil, a professora de alfabetização Keila Pereira da Rosa de Almeida, fez seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) sobre essa ferida no coração da comunidade, por meio de entrevistas com moradores antigos sobre “as memórias vividas na Praia Água Boa”. A seguir, trechos do relato de Keila a respeito da sua pesquisa acadêmica:
“Na Lua Nova as pessoas se reuniam para ir lá mariscar, pegar búzio, ouriço, polvo, pescar de vara na maré. A maré secava, dava para ver todas as pedras, as pessoas iam para os pontos estratégicos para pescar peixe. Quando a maré enchia, não tinha mais como pegar os mariscos, ia todo mundo para a areia, fazia uma fogueira, assava os peixes que pescaram, o ouriço.
Infelizmente, as crianças que nascem agora não vão ter mais esse ritual. Porque na verdade era um ritual de ir para esse lugar. Hoje as pessoas não têm mais isso. Às vezes a gente ouve os mais velhos dizerem assim: ‘puxa, hoje é lua nova, a maré está seca, se tivesse a praia, dava para ir para a praia’.
Algumas pessoas ainda vão, na Praia dos Quinze, na Barra do Sahy, mas não é como aquela época, de ir cedo …como eu conto no meu trabalho, que iam a pé, faziam uma farofa, isso quando tinha alguma coisa para fazer uma farofa, senão era só a farinha, um café, uma água. Chamava os vizinhos, chamava um, chamava outro, ia todo mundo a pé, para Água Boa, passar o dia. E depois ainda trazia para casa ouriço, búzio, para servir para a janta, servir para o outro dia, para alimentação.
Depois as coisas foram evoluindo, até que depois as pessoas iam de trator, e depois cada um com seu automóvel. E hoje não se tem mais isso.
Hoje vão na praia mais próxima, a Praia dos Quinze, cata o ouriço, mas traz para casa, para assar em casa, não tem mais aquele sentido de ficar lá na praia.
E as pessoas que fizeram isso [Imetame] não estão nem aí para quem usava a Praia. Porque para eles não tinha o sentido. Mas para nós, principalmente nós aqui da aldeia de Pau Brasil, tinha muito sentido.
Aquele lugar era um lugar sagrado, um lugar de momentos de ritual, onde se ia pescar, mariscar, contar causos, contar coisas da comunidade. Foi uma perda muito grande.
Infelizmente, mesmo que faça algo para reparar aquela perda, não vai pagar a destruição que foi feita e o deslocamento, né, porque ficamos deslocados de onde ter esse ritual de pescar, de mariscar, de ter esse momento de lazer.
Como uma das pessoas fala no meu relatório, ‘um lugar onde você se sentia livre’, livre para tomar um banho, rezar. Foi uma perda lamentável mesmo. Era um lugar de ritual, um lugar sagrado”.