Lideranças capixabas se mobilizam sobre criação de pasta dos povos originários e alertam para desmonte de políticas públicas
O anúncio da criação de um ministério dos povos originários pelo governo eleito de Lula (PT) tem mobilizado comunidades indígenas de todo o país a refletir e propor o perfil e atribuições da futura pasta. Um consenso que desponta, conforme relato de duas lideranças capixabas a Século Diário, é de que o foco deve ser nas agendas ambiental, climática e cultural dos territórios. Demandas de saúde, educação e gestão territorial, hoje (mal) tratadas nos respectivos ministérios da Saúde, da Educação e da Justiça e Segurança Pública, este, por meio da Fundação Nacional do Índio (Funai), devem ser continuar nesses locais, mediante orçamentos e estruturas aprimorados.
O desmonte das políticas públicas voltadas aos povos indígenas, promessa de campanha do presidente Jair Bolsonaro (PT), tem sido rigorosamente cumprido por seu governo, que chega ao fim em um mês. Nesse sentido, uma ação primordial é restabelecer o funcionamento adequado das estruturas atuais. O orçamento da saúde indígena em 2022 sofreu corte de 59% e a as coordenações técnicas locais da Funai foram extintas em uma canetada em Brasília.
“Os territórios indígenas em Aracruz são riquíssimos, mas as comunidades ficam à mercê, porque a Funai é responsável pela gestão do território, mas não faz a gestão. Ou não tem condições, ou usa de má-fé para que o território indígena seja impactado e detonado. A Regional fica em Governador Valadares e a local fica em Caieiras, e as duas não têm estrutura técnica nem humana. Falta combustível, equipe, logística. A intenção dos povos indígenas de Aracruz é trazer uma regional para o Espírito Santo. Assim como trazer uma regional da Saúde no Espírito Santo”, explana o Cacique Toninho, da aldeia Comboios.
No Espírito Santo, uma peculiaridade é a presença de 38 grandes empreendimentos industriais dentro ou no entorno das três Terras Indígenas (TIs) e suas doze aldeias Tupinikim e Guarani, localizadas em Aracruz, no norte do Estado. Ferrovia, rodovia, rede de alta tensão, desvio de rio para abastecimento de fábrica, gasodutos, portos, estaleiros…nenhum deles, lamentam as lideranças capixabas, cumpriram com a integridade das condicionantes de licenciamento ambiental e seguem funcionando e ampliando suas atividades sem sequer entregar os estudos e planos ambientais indígenas (ECIs e PBAIs).
“Os empreendimentos devem respeitar os povos indígenas. Que cada empreendimento se comprometa a reparar os impactos”, afirma o Cacique Toninho, da aldeia Comboios. “Grandes empresas desmataram o território indígena e fizeram deserto verde, plantando eucalipto”, acrescenta, citando o caso mais antigo de usurpação, iniciado pela Aracruz Celulose e continuado por suas sucessoras, Fibria e, agora, Suzano.
“Eles tiram a riqueza da população, acabando com os rios, as florestas, as matas, o lençol freático, os pequenas lagos, os rios, poluindo os mares, poluindo todos os espaços da biodiversidade da comunidade indígena. É lamentável. Precisa que os governos municipal estadual e federal ajudem nesse zoneamento dos territórios, devolvendo para as comunidades a sua autonomia e visibilidade, fortalecendo seus valores econômicos, social, cultural e espiritual”, reivindica.
A TI Comboios, exemplifica, tem áreas naturais relevantes que precisam de apoio dos governos, bem como compensações e reparações dos empreendimentos, para serem melhor protegidas e restauradas. “Nós que fazemos a segurança e a própria construção das nossas florestas, mas não tem projeto dos governos para reflorestar os espaços que foram ou estão sendo degradados pelas grandes ambições humanas. Comboios tem várias áreas de restinga, de matas, os rios, Comboios e Piraquê-Açu, mata ciliar. O Palhal é uma grande área de preservação de Comboios e precisamos de apoio dos órgãos governamentais”, cita.
Saúde e educação
Na Saúde e Educação, o cenário é igualmente desolador. “Tem comunidades que não têm escola nem unidade de saúde ou mesmo uma ambulância”, conta Toninho. A Saúde Indígena, ressalta, “foi e continua sendo camuflada como moeda de troca, assim como meio ambiente e educação”, apontando que “é preciso acabar com as ONGs responderem pela saúde indígena. Os escritórios da Sesai devem tratar diretamente com os estados e municípios, atendendo aos Artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Precisa utilizar os conhecimentos tradicionais indígenas, de ervas medicinais, não só curar mas também prevenir”.
Na Educação, demandas passam pela inclusão de disciplinas que abordem as culturas indígenas, com profissionais das próprias aldeias. “Ter o professor de dança indígena, de cultura, de língua indígena, o pajé, a parteira indígena”, elenca.
Sustentabilidade
Coordenador geral da Articulação dos Povos Indígena do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Paulo Tupinikim menciona um documento em construção pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da qual a Apoinme faz parte, em que os pontos focais do futuro ministério devem ser: direitos territoriais; instituições e políticas sociais; instituições e espaços de controle social; agenda legislativa; agenda ambiental; articulação e incidência internacional. “Nós criamos um GT na Apib para encaminhar as proposições ao governo Lula e quais ações que queremos que sejam parte do ministério”.
“Crise climática e meio ambiente é uma ação para o ministério. Ações sociais na Funai devem estar dentro do ministério indígena. Cultura, esporte e lazer, também. O desenvolvimento sustentável cabe dentro do ministério. Tem que detalhar tudo isso”, relata.
“Não é só criar o ministério. Qual o orçamento e quais ações serão voltadas para o ministério indígena? Inclusive, a indicação da pessoa para assumir precisa ser mais dialogada. Nós não concordamos que seja político-partidária. Tem que partir do próprio movimento indígena, que ele tenha perfil técnico”, pondera, refletindo debates que já vêm ocorrendo desde antes da COP 27, no Egito, quando o presidente eleito anunciou formalmente as tratativas da futura pasta.
Conforme reportagem no site ((o))eco, entre os nomes já divulgados pelo vice-presidente eleito e líder da transição, Geraldo Alckmin (PSB), estão: Benki Piyãko (Benki Ashaninka), Célia Nunes Correa (Célia Xakriabá), Davi Kopenawa Yanomami, João Pedro Gonçalves da Costa, Joênia Batista de Carvalho (Joênia Wapichana), Juliana Cardoso, Marcio Augusto Freitas de Meira, Marivelton Baré, Sônia Bone de Souza Silva Santos (Sônia Guajajara) e Tapi Yawalapiti.
Racismo energético
“Nós aqui no Espírito Santo precisamos nos organizar mais para fazer incidência sobre essa questão nacional. Se não ocuparmos, esses espaços serão ocupados por não indígenas. Nós temos esses conhecimentos, sabemos nossas necessidades e dificuldades”, localiza Paulo Tupinikim. “Dentro de todos os TI no Brasil, se formos olhar o ES, é um pontinho no meio do oceano, mas que é impactado de diversas formas. São 38 empreendimentos e precisamos pensar em formas e meios de mitigar e reparar impactos no nosso território”.
Exemplo é o racismo energético que foi tema de um debate na COP 27, que ocorre em Aracruz e as comunidades ainda nem haviam se dado conta. “Aqui nós vivemos um racismo energético claro. Várias linhas de transmissão cortam nosso território e nós pagamos uma energia muito alta. Não temos nenhuma compensação, nenhuma reparação”.