O futuro acontece por conta própria, tem planos para todos mas não conta pra nenhum
Têm muito em comum, a flor e a bailarina: são leves e graciosas, belas e sonhadoras. Têm o mesmo ofício: a flor vicejando no vaso de porcelana dança com o sopro da brisa matinal, enquanto a bailarina volteia no ar, suave como uma borboleta. Uma tem sonhos, tarefas e horários a cumprir, a outra espera, assiste, existe. Não sonha nem se preocupa. Sabe que a vida é breve e não a desperdiça com planos para o futuro, porque o futuro acontece por conta própria, não espera por ninguém. Uma flor tem que ser apenas uma flor, e enfeitar o mundo com sua beleza.
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A bailarina, ao contrário, não espera. Sabe que seu tempo nos palcos é breve, um relâmpago em céu azul. Precisa aproveitar ao máximo as oportunidades, correr atrás de novas chances, aprender novas técnicas. Bailar é preciso, mas o tic-tac do relógio não espera – o tempo é limitado. Mas neste momento impreciso na sala vazia, com o sol se desmanchando devagar através da vidraça, as duas comungam o mesmo desejo: bailar ao sabor do vento: a bailarina como uma flor, a flor como uma bailarina – irmãs no escoar do tempo.
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O telefone toca, o encanto se desfaz. A bailarina não baila e a flor escuta enquanto a outra fala, escuta, calcula, estuda as possibilidades, aceita ou recusa a oferta. A bailarina despe a fantasia de flor, é uma mulher de negócios ocupada com as contas a pagar, horários a cumprir. Tem responsabilidades, uma agenda complexa onde encaixa aqui e ali mais uma apresentação, mais meia hora de treino, uma consulta ao ortopedista. Talvez ache uma brecha para visitar um amigo doente, ou um cineminha no meio da semana. Ler aquele livro esperando há meses na estante: “A queda da bailarina”.
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A flor escuta e não entende. Não tem como dizer a ela que a vida é breve e o tempo é inconstante, a luz na vidraça não dura para sempre. Por que sonhar com mais contratos, se preocupar com novos passos de dança, bailando no ritmo constante dos ponteiros do relógio? A vida não deve ser desperdiçada com planos para o futuro, porque o futuro acontece por conta própria, tem planos para todos mas não conta pra nenhum. A bailarina deixa o telefone, vai pegar um tico de água para alimentar sua flor.
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O sol se põe, a vida se impõe. A bailarina troca a sapatilha por um salto alto, pega o casaco e se desmancha além da porta. A flor rodopia com a corrente de ar formada pela porta sendo fechada, e fecha também os olhos – sabe que o sol virá no dia seguinte e que a bailarina vai trocar o salto alto pela sapatilha para dançar outra vez. Sabe que dançarão juntas muitas vezes… Mas sabe também que vida é curta e o relógio na parede não para de correr…Se pudesse, pediria a ele para não ter tanta pressa, não ser tão preciso e constante…Que graça teria sua vida atada a um vaso de porcelana sem a leveza da bailarina?