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​Movimento Woke – parte I

Movimento imerso numa fábula de perfeição imaculada e virtudes absolutas 

Woke é uma palavra inglesa que significa “acordei” e ganhou um sentido cultural contemporâneo que herdou tiques do que nos anos 1990 se chamava de politicamente correto. No caso do Movimento Woke, o exagero de uma pretensa virtude pode descambar para posições caricaturais sobre o certo e o errado, numa construção moral exacerbada e que tenta realizar uma patrulha irreal de escrutínio linguístico e com o famigerado cancelamento, que é a imagem cristalizada de um viés irrealista, de falta de conhecimento do mundo real, da vida como ela é.

Verdadeiros estetas do mundo, a superioridade do movimento é esboroada, parecendo um pastiche involuntário de palmatória do mundo. A origem do uso da palavra woke em contexto cultural surgiu na comunidade afro-americana, como um modo de estar alerta em relação à injustiça racial.

O editor de notícias e cultura Elijah Watson, do website de música norte-americana Okayplayer, que escreveu artigos sobre a origem do termo woke, por sua vez, afirma que o termo foi cunhado pelo romancista William Melvin Kelley. Este romancista publicou, em 1962, um artigo com o título “If You’re Woke, You Dig It” (Se você estiver acordado, entenderá).

Na última década, o movimento Black Lives Matter fez ressurgir o termo, que foi criado para denunciar a violência policial contra pessoas negras. Contudo, seu uso se ampliou e ganhou os contornos do que se chama Movimento Woke. Em 2017, finalmente, o dicionário Oxford definiu o termo como “estar consciente sobre temas sociais e políticos, sobretudo, o racismo”.

O termo Woke pode ser motivo de orgulho ou ser usado como insulto, dependendo da interpretação dada. As ideias progressistas do termo, portanto, podem representar uma quebra de paradigmas, e sua deturpação produzir pessoas que se sentem moralmente superiores, querendo impor suas ideias aos demais.

A crítica principal sobre o que se chama de Movimento Woke recai sobretudo no exagero de patrulha do uso de expressões linguísticas e na prática de cancelamento que ocorre nas redes sociais, sempre em relação a polêmicas que nem sempre existem, mas que na interpretação woke ganha contornos de julgamento moral e que levam a boicotes sociais e profissionais. O policiamento da linguagem, por sua vez, se refere a expressões consideradas homofóbicas, racistas ou misóginas, dentre outras..

Da esfera cultural podemos passar à realidade política, em que o termo woke pode se relacionar às pautas afirmativas de igualdade racial ou social, como o feminismo, o movimento LGBTQIA+, o ativismo ecológico e do direito ao aborto, a vacinação, o uso do gênero neutro na linguagem, o multiculturalismo etc.

Nos Estados Unidos, é registrada a presença do termo woke na política, que tem crítica do Partido Republicano, e no Partido Democrata, por sua vez, existem críticas por parte de Barack Obama, porém, ganhando aderência na parte mais radical, em figuras como os congressistas Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez.

No mundo empresarial, o debate woke levou a alguns casos marcantes, como da campanha da Gillette, em 2019, em que se condenava a masculinidade tóxica, contra o sexismo, o bullying e o assédio sexual. A campanha foi bem vista por muitos, mas no YouTube levou a um boicote contra a marca, e a empresa dona da marca, a Procter & Gamble, sofreu um golpe econômico e ainda teve que lidar com um meme que se popularizou na direita política : “Get woke, go broke” (“vire woke, vá à falência”).

O que se vê é que jovens progressistas, que no começo da década passada se levantaram contra a Grande Recessão, ocupando as ruas (Occupy Wall Street), e trazendo à baila a obra de Thomas Piketty, Teoria das Desigualdades Econômicas, mudaram, e agora vemos a juventude tomada pelo termo woke, com questões raciais e de gênero sobrepondo pautas econômicas.

O exagero woke, contudo, leva à autocensura universitária, a questionamentos em escalações de filmes, tem influência na publicidade, no jornalismo se começa a citar o supremacismo branco, etc. No Movimento Woke, um fato mais irrealista se dá na tentativa de interferir em obras literárias, peças de teatro e demais obras que foram feitas em outras épocas, com contextos de costumes e comportamentos antigos em que pode detectar diversos problemas e pedir uma revisão no texto, em desfechos e desenlaces, etc.

O maniqueísmo do movimento tende a entender os próprios valores como absolutos, inquestionáveis, e a hipersensibilidade é uma característica que leva a estas ondas de cancelamentos e de controle quase delirantes da linguagem. O crivo do ativismo woke, portanto, atua com um moralismo irreal, revisionista, meio que palmatória do mundo, e intolerante para com erros supostos e imaginários. Ou seja, o Movimento Woke, quando se torna deturpado e exagerado, perde o contato com a realidade mais elementar, de que há gradações na realidade e de que nem tudo é condenável ao menor deslize.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog
: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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