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ES é referência nacional, mas sob uma ótica ‘gerencialista’, aponta educadora

Modelo, que começou a ser disseminado na década de 1990, foi defendido em anúncio do ministro Camilo Santana

Wilson Dias/ABr

O Espírito Santo é uma referência nacional em Educação, mas sob uma ótica “gerencialista”, que se dissemina no Brasil desde meados da década de 1990, em oposição à “perspectiva popular participativa democrática”. Retomar a valorização e protagonismo dos professores e a autonomia das escolas, com ênfase em uma formação emancipadora e crítica dos estudantes, é uma mudança que precisa acontecer em âmbito federal, repercutindo assim, naturalmente, nas gestões estaduais.

As reflexões são da doutora em Educação Gilda Cardoso, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), onde coordena o Laboratório de Gestão da Educação Básica do Espírito Santo (Lagebes/Ufes), e ocorrem sob o impacto das declarações feitas pelo ministro da Educação do governo Lula (PT), Camilo Santana, feitas nessa terça-feira (10).

“Na Educação, ao contrário do que vemos na Saúde, não conseguimos conquistar a hegemonia, no sentido de fazer a educação um bem público acessível a todos e não controlada pelo mercado”, lamenta. “Não digo que fiquei decepcionada, porque já esperava [essa postura] desde a campanha”, reconhece. A mudança, afirma, precisa ainda ser construída. “A gente espera que a educação seja um preparo para o exercício pleno da cidadania”.

Sobre três das medidas priorizadas pelo novo ministro, Gilda expõe os riscos de que elas intensifiquem o processo de perda de autonomia das escolas e professores e perda da capacidade de respeito às individualidades dos estudantes, por meio de ações massificadas, vendidas em pacotes pelas empresas de Educação, que acabam por induzir políticas públicas excludentes.

“Não leva em conta as especificidades dos processos educacionais e à autonomia pedagógica das escolas e dos professores que têm seu trabalho regulado por mecanismos voltados para ‘resultados’ ou ‘metas’ mensuráveis, próprias da gerência numa administração empresarial”.

Uma delas é o Programa de Alfabetização na Idade Certa (PAIC). “Como você exige alfabetização na idade certa, sem levar em consideração as condições estruturais das escolas, se a escola tem autonomia para fazer desseriação, inclusive pensando para fora da BNCC [Base Nacional Curricular Comum]. Se o aluno aprende melhor visualmente, por exemplo, então pode-se criar um projeto envolvendo Artes e Educação Física, junto com Língua Portuguesa … a real transdisciplinaridade. Que tipo de recomposição de aprendizagem você pode gerar se você espera resultados mensuráveis? É produção em escala, no ritmo da fábrica. E seres humanos não são engrenagens … Se nós adultos não somos assim, muito menos crianças e adolescentes”.

Outra prioridade anunciada é a escola de tempo integral, adotada no estado natal do ministro, o Ceará, e outros do Nordeste. Geralmente, ressalta, Gilda, por meio de parcerias público privada articuladas por entes como o Movimento Todos pela Educação, Movimento Colabora Educação, Instituto Unibanco, Fundação Lemann, Instituto Ayrton Senna. “Uma série de empresas que defendem a reforma do ensino médio, a BNCC, o que muito nos preocupa”.

A Base Comum, explica, “foi imposta em 2017 pelo governo de Michel Temer. Empobreceu o currículo, não nas escolas de elite, que continuam com Sociologia, Filosofia, línguas estrangeiras, arte, esporte … Mas empobrece as públicas, porque elas não contratam profissionais formados nessas disciplinas tão importantes, mas que estão fora da BNCC”.

Nesses colégios da elite, afirma, “os alunos não estão aprendendo Projeto de Vida, Empreendedorismo … Continuam aprendendo História, Sociologia, Filosofia, Artes … conhecimentos que estão sendo subtraído do nosso estudante das redes públicas, que são a maioria!”, compara.

A terceira medida, de Conectividade, “é muito bem recebida, desde que não seja algo meramente tecnicista”, afirma. Segundo Camilo Santana, o objetivo é conectar todas as escolas internet até o final deste governo Lula. “Se isso estiver articulado a uma pedagogia crítica, freiriana, que faça o aluno pensar o mundo, vai ser bom. Agora, se essa conectividade estiver direcionada apenas para os resultados aferidos por testes em larga escala, e é o que eu acho que vai ser, infelizmente, vai potencializar esse sistema gerencialista de gestão no Brasil inteiro”.

Esses testes de larga escala sofrem muitas fraudes, alerta a doutora em Educação. “Pesquisas sérias indicam isso, que houve fraudes nos processos de aplicação de provas, como impedir que os alunos da educação especial façam as aprovas e reduzam a pontuação da escola. As escolas passam a competir entre si, não é o que precisamos”, reivindica.

“A educação é um processo essencialmente humano e, portanto, dialógico. Negar essa perspectiva é negar o direito à educação, pressuposto para o exercício dos demais direitos de cidadania. Só os adultos que tiveram pleno acesso ao conhecimento historicamente construído (literatura, artes, sociologia, história, filosofia etc.) a partir de uma perspectiva crítica e emancipadora tiveram acesso à plenitude do direito à educação”.

A coordenadora do Lagebes/Ufes conta que a disseminação da perspectiva gerencialista ganhou força em meados da década de 1990, “quando se começa a discutir a reforma do Estado, alegando que é muito dispendioso, e que a educação principalmente era muito cara”. Mas a Educação, salienta, precisa mesmo de muito investimento. “Uma boa educação é cara, porque tem que pagar bem os professores, tem que ter material de qualidade, informatização … Mas quando essa reforma do Estado chega na Educação, começam a falar que ‘podemos fazer mais com menos’, e a introduzir mecanismos de descentralização da responsabilidade pelos resultados e de controle dos resultados pelo órgão central, com a entrada das empresas e movimentos empresariais”, explica, citando, no Espírito Santo, a intervenção do Espírito Santo em Ação, vinculado à Federação da Indústrias (Findes).

Nessa época, recorda, professores da Educação Básica em Vitória, por exemplo, tinham remuneração equivalente a dez salários mínimos. “Tínhamos bons salários, formações constantes, armários lotados de material. Isso aconteceu na gestão de Vitor Buaiz em Vitória, em São Paulo, com Erundina, em Porto Alegre … Esse período foi auspicioso. Foram constituídos conselhos de escolas, foi feita a luta para que os diretores fossem eleitos e para estimular a criação de grêmios nas escolas e que a gente pudesse discutir educação com associação de moradores”.

Após mais de trinta anos de reversão desse modelo, o empobrecimento é generalizado nas redes públicas, lamenta, em contraposição a lucros crescentes das empresas que vendem seus produtos às gestões municipais e estaduais.

“É um projeto de formação de aluno que é o seguinte: se um aluno de educação pública se destacou, coloca na Fundação Leman para ganhar prêmios, ganhar bolsa de estudos para Harvard. Se não se destaca, vai para o mercado precarizado, não formal. Só que a Educação é um direito de todos. Ela parte do pressuposto, no estado democrático de direito, que existem desigualdades no ponto de partida, mas que não podem existir desigualdades no ponto de chegada, por isso é preciso igualdade de oportunidades. E esse modelo gerencialista não garante igualdade de oportunidade. Ao contrária, intensifica as desigualdades e está criando problemas para gerações inteiras de pessoas, que não recebendo uma formação que as prepare para o mundo do trabalho, não o mercado de trabalho, mas o mundo do trabalho e a plena cidadania”.

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