Festival de Verão de Guarapari reuniu grande nomes da música e contracultura brasileiras nos Anos de Chumbo da ditadura
No embalo da contracultura, do movimento hippie e do festival de Woodstock, que ocorrera pouco mais de um ano antes, três capixabas ousaram realizar um grande evento no Estado, que é considerado o primeiro grande festival de música a céu aberto no Brasil – e para alguns na América Latina. O ano era 1971 e o local escolhido foi a região das Três Praias, em Guarapari, um lugar paradisíaco que combinava com a filosofia de paz, amor e liberdade da contracultura, que se opunha direta ou indiretamente de forma política, estética e comportamental aos Anos de Chumbo da ditadura militar.
Conhecido também como Guaraparistock, o Festival de Verão teve algumas semelhanças com o evento ocorrido nos Estados Unidos, como o fracasso financeiro e o caos organizativo. Porém, enquanto o festival gringo entrou para a história mundial, a realização capixaba caiu no esquecimento. Apesar de um episódio ocorrido lá ser marcante na história da música brasileira – o pulo de Tony Tornado do palco que acabou causando lesões graves em uma espectadora- este fato não é muito lembrado de forma associada ao Festival.
Por isso a importância do livro “Memórias da Liberdade: 50 Anos do Guaraparistock”, de autoria do jornalista e escritor Eduardo Maia, que reúne arquivos e boas histórias que ajudam a resgatar a memória, a importância e o caráter folclórico deste evento. A obra será lançada pela Editora Cândida nesta quinta-feira (26), às 19h, na Biblioteca Pública do Espírito Santo, localizada na Praia do Suá, em Vitória.
O evento foi abordado por Eduardo Maia em seu trabalho de conclusão de curso em Comunicação Social e adaptado para sair em livro, que será vendido na ocasião com preço promocional e posteriormente pelo site da editora.
O jovem autor ouvira falar do evento por meio de seus tios, que eram amigos de Rubinho Gomes, jornalista e um dos responsáveis pelo festival junto a Antônio Alaerte, então secretário de Turismo de Vitória, e o advogado Gilberto Tristão. Foi entrevistando organizadores, artistas, público e outros envolvidos, assim como pesquisando nas hemerotecas, que reúnem arquivos de jornais e revistas, que ele consegue consolidar um relato que, não sem explicitar contradições entre depoimentos, apontam os vários fracassos e também os fatores de sucesso do emblemático evento.
Era fevereiro de 1971, em pleno verão, em que a cidade balneário já recebia muitos turistas. Alguns comentam que muitos hippies e cabeludos podiam ser vistos pelas ruas de Guarapari. Segundo relatos, muitos carros e ônibus seriam barrados na estrada, contribuindo, entre outros fatores, para que o total de público fosse muito inferior às expectativas anunciadas. “O festival foi muito importante principalmente pro ter sido feito em pleno regime militar, no governo Médici, tendo como governador do estado Cristiano Dias Lopes Filho. Não era qualquer um que poderia fazer um festival desses. A repressão foi muito grande”, conta o autor do livro.
Mesmo assim, foram registrados visitantes de Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Brasília e outros locais para curtir as praias e assistir aos shows de artistas como Gal Costa, Milton Nascimento, Erasmo Carlos, Ivan Lins, Luiz Gonzaga, Novos Baianos, Taiguara, Tony Tornado e dos capixabas como Aprigio Lyrio e Cris Portela. O evento ainda foi apresentado por Chacrinha, que no primeiro dia teve que subir ao palco com seu carisma para acalmar o público que havia atirado pedra em protesto contra o atraso de quase 5h para início das atividades, como registrou a revista Cruzeiro, que entretanto, aponta que as vais foram menores que os aplausos e vários shows foram recebidos com entusiasmo pelo público presente.
Na verdade, nem todos os anunciados chegaram a se apresentar, revelando as dificuldades organizativas. Gal Costa não recebeu o valor de cachê prometido e teria dado meia-volta do Aeroporto de Vitória. Erasmo chegou a estar em Guarapari, curtir suas praias mas não se apresentou pois a produção não pagou para trazer sua banda, Ivan Lins não teria tocado por não haver instrumentos que necessitava. Elis Regina, Gonzaguinha, Vanderleia e até Roberto Carlos figuram em anúncios mas não chegaram a concretizar sua participação.
Rubinho Gomes alegou que de última hora o governo do Estado teria dado para trás com o patrocínio, o que teria prejudicado os pagamentos. A versão entra em confronto com outras questões. Mas depoimentos apontam que o resultado só não foi pior porque a prefeitura de Guarapari ofereceu apoio em meio ao caos dos primeiros instantes.
Mas vale registrar que outras atrações, como Novos Baianos e Luiz Gonzaga, que já não estava no auge da carreira, tocaram repetindo a dose em mais de um dia para tampar os buracos da ausência de outros artistas. Só com sua sanfona, o show de Gonzaga, que fora gravado, veio à tona 50 anos depois, lançado como o disco Baião dos Hippies, disponível em CD e pela internet. O mesmo ocorreu com shows de Jards Macalé, Taiguara e da banda Soma, produzidos Marcelo Fróes.
Para além dos registros oficiais, a obra de Eduardo Maia, com pretensões mais jornalística que historiográficas, revela muitas boas histórias, como de um homem que veio do Rio de Janeiro de carona, sem recursos e acabou gastando o único dinheiro que tinha para os ingressos ajudando um amigo que passou mal, ficando ambos sem ver o festival; da banda Os Mamíferos, que tocou sem autorização no festival e acabou causando briga entre músicos e produção; ou do suíço que vestido de policial apreendia drogas nas barracas e as usava ou revendia.
Apesar de tantos incidentes, há entrevistados que curtiram muito o festival, outros que se decepcionaram ou se irritaram, ou talvez até se traumatizaram, como Tony Tornado, que viu o episódio ocorrido levar ao ocaso sua carreira musical, sendo um tema sobre o qual não gosta de falar.
Entre vivos e feridos, todo bom perrengue vira história para contar. Grandes sucessos não existiriam sem ousada. Grandes fracassos também não. O fato é que ambos deveriam ter seu lugar na história.