Lideranças preparam denúncias à polícia, ao MPF e à Funai, e organizam campanha de apoio para reconstrução
A Tekoá Yy Retxãkã, Aldeia Águas Cristalinas Sagradas, localizada na Serra do Caparaó, foi alvo de um incêndio que destruiu a Opy (Casa de Reza) e a cozinha comunitária. As construções de pau a pique tiveram parte ou toda a estrutura consumida pelo fogo e, na estrada de chão que dá acesso à aldeia, sinais de palmitos cortados, possivelmente pelos mesmos incendiários, como acreditam as lideranças que relatam o fato.
Wera Djekupe, o Marcelo Guarani, cacique da Tekoá Ka’agwy Porã (Aldeia Nova Esperança), em Aracruz, norte do Estado, conta que constatou o incêndio no último domingo (29), mas que ele deve ter ocorrido alguns dias antes, num período em que o local estava vazio, à espera de novas famílias Guarani que estão vindo de São Paulo para reocupar a aldeia.
“Fiquei chocado com essa violência, essa intimidação. Isso machuca os sentimentos e a alma das pessoas”, lamenta Djekupé. “Dá para acreditar que é um incêndio criminoso. É como se quisessem intimidar os indígenas”, avalia.
“Deve ser coisa de bolsonaristas, pessoas que se dizem de paz e amor, mas que não são nada disso”, deduz, citando alguns dos inúmeros crimes de ódio contra indígenas cometidos nos últimos quatro anos em várias partes do País, sem que tenham recebido a devida investigação e punição por parte do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Entre eles, os assassinatos de dois jovens em Barra Velha, na Bahia, e de uma liderança Kaiowá, além do genocídio dos Yanomami, na Amazônia, que só agora recebe o tratamento adequado.
Todo esse preconceito e violência, consigna o cacique, contrasta com a visão indígena de sociedade e território, já seguidamente constatada em estudos que mostram como as florestas estão mais protegidas dentro de Terras Indígenas. “Os brasileiros ignorantes da história do País continuam fazendo os mesmos atos cometidos pelos primeiros europeus que chegaram aqui. Isso tem que parar, tem que haver um entendimento, pois é um País onde viviam só os indígenas. De repente, vêm europeus com outra cultura, colonizando e o tempo todo trazendo violência ao povo nativo desse pais. Já está demais da conta, tem que parar com isso. Tem que conscientizar o povo para respeitar. Os índios não querem mandar ninguém embora, não querem o país todo para eles, querem tranquilidade e paz no seu espaço”.
Na sua Aldeia Nova Esperança, conta, a terra foi devolvida aos indígenas toda degradada, após décadas de monocultivos de eucaliptos da Suzano Papel e Celulose (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) e outros usos insustentáveis. “Temos que plantar a floresta toda de novo para sobreviver, não só pensando nas crianças, mas nos animais e no mundo todo. Já reflorestamentos com mais de 228 mil mudas nativas e frutíferas, que hoje estão com mais de dois metros de altura e logo vamos ter uma nova floresta”.
Local sagrado
No Caparaó, ao contrário, a floresta é vigorosa e foi incorporada ao Parque Nacional, quando houve sua ampliação, em 1997, para os atuais 31,8 mil hectares. “Traz muita felicidade ao corpo, à alma, à vida, dá mais força e mais sabedoria aos Guarani, mais harmonia com a natureza. Tem tanta água, floresta e animais. Esse é um espaço sagrado, não pode ser desrespeitado. Se tornou um santuário onde os indígenas já fizeram vários encontros de parteiras, religiosos e lideranças da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY). Deve ser intocado, não pode ser desrespeitado”, reforça Djekupé.
Cacique da Tekoa Porã (Aldeia Boa Esperança), em Aracruz, Werá Kwaraí, o Toninho, lembra que a aldeia caparoense surgiu primeiro nos sonhos de sua avó, a xamã Tatantin-Rua Retée, que guiou os Guarani do Rio Grande do Sul até Santa Cruz, no final da década de 1960. A xamã encontrou nas montanhas do Caparaó o local ideal para que o pajé, Tupã Kwaray, pudesse falar com Deus e receber a mensagem sobre onde seria a Terra Sem Males para onde os Guarani deveriam se mudar, já que em Aracruz, a truculência da então Aracruz Celulose e de outros grandes empreendimentos industriais castigava a saúde dos Guarani e também dos parentes Tupinikim.
Os sonhos, ressalta Werá Kwaray, são muito importantes na cultura Guarani e ele próprio também sonhou com o Caparaó anos depois. “Minha avó sempre dizia que sonhos são revelações e que não podemos perder, temos que lutar por eles. Nós vamos lutar por essa aldeia, ela vai ser não só um lugar de reza, mas uma aldeia de verdade”, afirma.
Para cumprirem a missão, os índios precisam de um terreno no alto da montanha. Foi então que um grupo de amigos, entre eles o fundador de Século Diário, jornalista Rogério Medeiros, compraram um terreno e o doaram para os Guarani. O local era ideal para os Guarani, por ser próximo do Pico da Bandeira e com boas condições naturais. Os índios então ganharam o terreno, uma pequena área, e fizeram sua aldeia. Como pela lei brasileira os índios não podem ter patrimônio, eles não puderam receber a escritura do terreno. Mas são os donos da terra doada.
Nos primeiros anos, o espaço foi usado pelo pajé Guarani Tupã Kwaraí para se comunicar com Deus, quando periodicamente ele subia a montanha para seus rituais sagrados. Há pouco mais de dez anos, a ocupação com famílias Guarani teve início, mas sofreu um recuo, até que a aldeia fosse demarcada e oficializada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Além da autarquia indígena, também o Ministério Público Federal (MPF), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) acompanham a Tekoá Yy Retxãkã e, depois de um período de perseguição, a questão parece pacificada.
“É um paraíso, porque tem água natural, não tem cloro no meio, tem o ar puro, isso é para nós muito importante para a saúde e para a alma, um lugar que Deus criou para nós, para nos fortalecer”, afirma Werá Kwaraí.
Reconstrução
Os caciques cuidam das denúncias formais sobre o incêndio, por meio de Boletim de Ocorrência na Polícia Civil, além da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério Público Federal (MPF).
O restabelecimento das estruturas destruídas deve contar com mutirões com participação dos Guarani de Aracruz e de quem mais quiser colaborar. “Estamos pedindo apoio dos amigos para reestruturar a aldeia. Vamos reconstruir a casa de reza e a cozinha, colocar placas de sinalização e de informações sobre a aldeia”, anuncia.
Para isso, podem ser feitas doações de alimentos, insumos, dinheiro e força de trabalho. “Quem quiser doar ou vir trabalhar com a gente, é bem-vindo”, convida Djekupé, acrescentando que os quatro dias do feriado de Carnaval serão especialmente dedicados para esse trabalho, e que os interessados em compor a mão de obra podem procurá-lo para combinar a logística.
Reconstruída e habitada, a Tekoá Yy Retxãkã deve ter, além dos moradores fixos que estão para chegar, famílias de Aracruz que passarão temporadas no alto da montanha. “Vamos fazer parcerias com as aldeias de Aracruz e revezamentos para manter esse lugar, que é um oratório, um lugar sagrado e maravilhoso”.
Para colaborar
Doações em dinheiro podem ser feitas na conta corrente da Associação G K Porã:
Banco do Brasil
Agência 829-X – CC 73284-2
Para outras doações, pode entrar em contato com Marcelo Guarani, no telefone 27-99689-2893.