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‘Onde há mais negativa de medidas protetivas, há mais feminicídio’

Pesquisadora da Ufes, Rosely Pires, aponta o ES como um dos estados onde isso ocorre; 85% das vítimas são negras e de periferia

Ana Salles/Ales

O Espírito Santo é um dos três estados brasileiros onde é possível enxergar uma relação direta entre o aumento do número de feminicídios, especialmente de mulheres negras e de periferia, com um número elevado de decisões judiciais que negam os pedidos de Medida Protetiva de Urgência (MPU) – uma das principais ferramentas de proteção à vida das mulheres que sofrem violência doméstica, prevista na Lei Maria da Penha.

A observação é da professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e coordenadora-geral do Programa de Extensão Fordan: Cultura no Enfrentamento às Violências, Rosely da Silva Pires, e chama atenção para a necessidade urgente de uma mudança de mentalidade dos agentes da Justiça capixaba no sentido de aplicar com integridade os dispositivos da lei, com ênfase na liberação das MPUs solicitadas, para salvar as vidas das mulheres, principalmente as mais vulneráveis do ponto de vista racial e social.

Rosely utilizou dados de três publicações para chegar a essa conclusão: o encarte Violência contra a Mulher do Fórum de Segurança Pública de 2022, com dados de 2021; o relatório “Avaliação sobre a aplicação das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha”, publicado também em 2022 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Instituto Maria da Peanha (IMP) e outras entidades da sociedade civil; e o artigo “Structural Advocacy Organizations and Intersectional Outcomes: Effects of Women’s Police Stations on Female Homicides” (Organizações Estruturais de Advocacy e Resultados Interseccionais: Efeitos das Delegacias da Mulher sobre os Homicídios Femininos, em tradução livre), divulgado em março de 2022 pelos pesquisadores Anita M. McGahan (Universidade de Toronto), Paulo Arvate (FGV-SP), Paulo Ricardo Reis (UFRJ) e Sandro Cabral (Insper).

No cruzamento de dados, a acadêmica destaca a situação de três unidades federativas, entre elas o Espírito Santo. No Rio Grande do Norte, houve aumento de 53,8% nos casos de feminicídio e 10% de indeferimento de MPUs. No Distrito Federal, onde o feminicídio aumentou 47,1%, o indeferimento das medidas foi de 15,79%. No Espírito Santo, o aumento de 46% de feminicídio é acompanhado de 8,49% de negativa de MPUs.

O extremo oposto também foi analisado. “Se há relação direta entre crescimento de feminicídio e indeferimento de MPU, precisava avaliar se houve decréscimo de feminicídio nos estados que houve mais medidas deferidas”, pontua Rosely. E foi o que ela constatou na Bahia, onde houve queda de 22,8% das mortes de mulheres e indeferimento de apenas 3,93% de MPUs. Mato Grosso teve queda de 30,6% e negativa em 2,47% dos pedidos. E Mato Grosso do Sul teve queda de 14% dos feminicídio, com indeferimento de apenas 1,63% das medidas solicitadas.

“A gente percebeu na pesquisa que os estados que tiveram aumento de feminicídio também tiveram um número acentuado de negativas de medidas. Os estados que tiveram decréscimo de feminicídio, tiveram número pequeno de indeferimento de MPU”, explica.

Há ainda a análise sobre o perfil das mulheres que mais morrem: no estado potiguar, 88% eram negras; no DF, 67%; e no território capixaba, 85% das mulheres que morreram eram negras.

Delegacias feitas para mulheres brancas

A pesquisadora chama atenção ainda para um grande vazio de informações nos principais documentos oficiais que são produzidos no âmbito da denúncia da violência contra a mulher, incluindo os boletins de ocorrência e as sentenças judiciais. A denúncia é feita no relatório do CNJ e IMP e destaca ainda que o Frida – Formulário Nacional de Risco e Proteção à Vida, que deveria ser preenchido mediante a solicitação de medida protetiva, não consta em quase 60% dos casos estudados pelo CNJ.

“Existem dificuldades de identificar nos dados, com objetividade, quais os tipos de violência, qual sexo, idade, raça cor e etnia, escolaridade e ocupação. Há baixa informação para que você, primeiro, entenda quais são as mulheres que estão tendo as suas medidas protetivas indeferidas. A partir disso que políticas públicas podem ser pensadas? Qual é o risco maior da negativa para essas mulheres?”, alerta Rosely.

“Cruzando os dados sobre aumento de feminicídio, negativa de medidas protetivas e mortes, a gente tem a hipótese de quem tem tido as medidas negadas são as mulheres negras e de periferia. Isso pensando também nos dados do Fordan e na pesquisa de Toronto e da UFRJ”, sublinha.

No artigo internacional, um dos destaques feitos pelos autores é de que as delegacias especializadas na defesa da mulher (Deam) no Brasil conseguem surtir efeito positivo para as brancas e não para as negras. A explicação para isso, diz Rosely, inclui o fato de que as mulheres negras de periferia não dispõem da infraestrutura exigida pelas Deams, como acesso a computador e internet para formalizar a denúncia online. “Nem dinheiro para o transporte até uma delegacia elas têm”, afirma.

O artigo, salienta, conclui que não existe a compreensão de que a violência contra a mulher negra tem características específicas, e afirma a necessidade de ter agentes negros – delegados, escrivãos, juízes – para que a mulher negra tenha representatividade.

Há também inoperância dos agentes de Justiça em relação ao prazo máximo estabelecido na lei, de 48 horas para a emissão da MPU, bem como para a adoção de medidas em casos de descumprimento, ou seja, para situações em que o homem volta a se aproximar da mulher, mesmo quando ela está sob proteção da MPU. Na análise de 1,7 mil casos, o relatório do CNJ aponta que em apenas dois houve denúncia; em nove, foi determinada nova medida protetiva de urgência, e, em dezessete, houve prisão. “Mas em 98,37% dos casos, não há informação sobre o que foi feito”, alerta Rosely.

O resultado de tantas omissões, afirma, já é bem conhecido da sociedade. “Está no Anuário de Segurança Pública: um estupro a cada dez minutos e um feminicídio a cada uma hora no Brasil. Isso é resultado da morosidade da Justiça”.

A coordenadora do Fordan acrescenta a influência do orçamento do governo federal destinado a políticas públicas de combate à violência contra a mulher. “Em 2020, somente 44% do orçamento foram gastos. Em 2021, o orçamento previa R$ 21 milhões, mas apenas R$ 1 milhão foi gasto, 20 milhões sumiram”, enuncia. As políticas públicas são fundamentais, afirma. “Essa mulher que está morrendo, negra de periferia, tem dependência financeira do agressor. Para ela ter as condições objetivas mínimas de sobrevivência, independente desse agressor, precisa de cesta básica, de aluguel social. Se você não tem orçamento para isso, é um projeto de morte das mulheres, é um projeto de governo de feminicídio”.

Capacitação e sensibilização

O relatório do CNJ traz ainda recomendações expressas para que a Lei Maria da Penha seja melhor aplicada, por meio das medidas protetivas. Uma delas é a capacitação e sensibilização dos servidores do Judiciário, para compreenderem “a importância de não tolerar a violência doméstica”, assinala Rosely, lembrando que a recomendação já havia sido feita durante o Simpósio “Violência Institucional e Revitimização da Execução da Lei Maria da Penha”, realizado em outubro de 2021 em comemoração aos 15 anos do Fordan. No evento, especialistas de diferentes estados do país fizeram suas análises jurídicas sobre casos acompanhados pelo Fordan, que explicitam a reprodução, nos órgãos de Justiça, da misoginia que gera a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Na ocasião, a professora e vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), Carla Apolinário, disse que o cerne do problema era falta de compreensão, pelos agentes de Justiça, da complexidade da Lei Maria da Penha. Problema que precisa ser resolvido com formação permanente. “Juízes, desembargadores, servidores (serventuários) e terceirizados dos setores administrativo e de infraestrutura dos Tribunais devem receber formações e capacitações periódicas em Direito Antidiscriminatório”, disse, ressaltando que o próprio CNJ tornou tais conteúdos obrigatórios nos próximos concursos para juiz. “Juízes serão obrigados a ter esses conhecimentos se quiserem ser aprovados nos concursos. Essa mudança na magistratura vai certamente provocar efeito em cascata na formação em Direito na graduação”.

A necessidade de capacitação também foi mencionada pela professora da Ufes em reportagem exibida neste domingo (12) pelo Fantástico, abordando a fragilização da segurança de mulheres que sofrem violência executada pelos agentes da Justiça em todo o país, quando não concedem as MPUs ou as concedem de forma parcial.

“Se você não tem formação para as pessoas que atendem diretamente a mulher, seja policial que acolhe, seja o delegado que faz o boletim de ocorrência, e o escrivão, seja a juíza, se não há uma formação de enfrentamento, a discussão de gênero, nós ainda vamos continuar por longo tempo tendo resultados como nós temos”, declarou Rosely na reportagem.

Informação e integração de dados

Outra recomendação é para que os documentos que registram a violência contra a mulher contenham informações relevantes e suficientes para que entenda qual a situação de vulnerabilidade e risco na qual a mulher se encontra e que o relato oficial, desde o Boletim de Ocorrência, deve ser baseado especificamente na declaração da mulher. “Isso a gente percebe que não acontece, como já relatamos diversas no Fordan, quando o escrivão não registra que se trata de homofobia ou de misoginia, mas sim de conflito familiar ou outras questões não abrangidas pela Lei Maria da Penha”, pontua Rosely.

Uma terceira recomendação expressa do CNJ e Instituto Maria da Penha é para que haja uma unificação das informações e seu compartilhamento entre as diferentes varas judiciais envolvidas. Posição defendida também pelo Fordan. “A gente precisa de varas híbridas que se comuniquem: a vara de violência, a criminal e a de família, que concede a pensão alimentícia, mas não sabe que ela sofre violência. Hoje as varas não se comunicam, quem dá a sentença não tem noção do problema, e a mulher fica de um lado para o outro e sem dinheiro, é inviável”, descreve Rosely.

Todos esses problemas, reforça a coordenadora do Fordan, envolvendo a falta de entendimento sobre a complexidade da Lei Maria da Penha, a misoginia e o racismo estrutural, a falta de integração entre as varas judiciais e os vazios de informações cruciais, resultam em sentenças que revitimizam a mulher já agredida no âmbito doméstico, conforme noticiado em Século Diário em casos acompanhados pelo programa de extensão e que, somente com esse acompanhamento próximo e devidas denúncias, conseguem ter um desfecho favorável às vítimas.

“Numa sociedade misógina, homofóbica e racista em sua estrutura, mesmo aqueles que estão no lugar de acolher a vítima, de encaminhar a violência, não conseguem fazer isso da forma como deve ser feita“.


‘Repercussão nacional da misoginia do TJES vai ser muito ruim’

Professora da UFF Carla Apolinário defende formação de juízes em Direito Antidiscriminatório, que tornou-se obrigatório em concursos


https://www.seculodiario.com.br/justica/repercussao-nacional-da-misoginia-do-tjes-vai-ser-muito-ruim-alerta-professora-da-uff

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