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O labor de cada dia

Todos têm suas fainas diárias de carregar e descarregar os atropelos da vida

Ali defronte, na ruazinha estreita onde passo nas minhas caminhadas matinais, tem um caminhão descarregando material de construção – uma reforma, por certo, que as casas em volta estão muito precisadas. Um homem alto e forte se agiganta de pé na carroceria jogando sacos recheados para um outro na calçada, que os joga para o interior da casa. Trabalho árduo, eles estão suados, os dorsos nus arquejando, a musculatura bem definida revelando-se sob a pele escura.

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Não há nada de especial nesses dois operários descarregando as sacas pesadas, nem nas pilhas que vão diminuindo aos poucos, nem no caminhão parado no meio da rua. Os que passam não olham, ou se olham não veem a cena banal que não altera as asperezas de seu ir-e-vir – também têm suas fainas diárias de carregar e descarregar os atropelos da vida.

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Paro sob a sombra gentil de uma velha castanheira e fico apreciando os dois trabalhadores: ganhando pouco, suando muito – Vamos correr antes que o dia acabe. Há uma beleza singela na arte de defender nosso pão de cada dia – não importa qual nem como. Pode ser um pintor e seus pincéis, registrando para a posteridade essa modesta cena de rua. Ou eternizando uma árvore centenária refletida em um lago tranquilo. Talvez um pintor mais modesto, colorindo de azul as paredes dessa casa que se renova. O padeiro que passa de madrugada rumo à padaria; a cozinheira comandando o fogão com a colher de pau, como a batuta de um maestro.

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Não importa a função ou a vocação, o preparo profissional ou o salário – todo trabalho dignifica, enobrece, compensa. Cada qual na tarefa que a experiência ou o destino lhe reservou: o que precisa ser feito, o que ninguém mais quis fazer. Para muitos o trabalho a ser feito não é uma escolha, mas o que os dados da sorte determinaram. Os antigos diziam – Vamos levar a vida antes que a vida nos leve. A remuneração nem sempre é justa, mas é a motivação para o esforço diário.

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Platão disse: Nenhum problema humano é importante. Mas no ato de completar sua tarefa, a pessoa humana é sublime. Pode ser a descoberta de uma vacina para curar uma pandemia que arrasou o planeta. Pode ser o enfermeiro que vai injetá-la no braço da faxineira que vai limpar o chão quando o dia termina. Todos eles são importantes na cadeia produtiva, fizeram sua parte e seu esforço se encaixa na corrente que se chama vida e não sobrevive sozinha – são muitos elos atados uns aos outros – contribuímos para que todos se encaixem.

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A tarefa termina, os operários vão embora. Outros profissionais virão para prosseguir o trabalho. O caminhão arranca com um rugido e some ladeira acima – dever cumprido. Sigo também meu caminho imaginando qual será a cor das paredes, quem virá encher de risos e lágrimas esses cômodos cheirando a tinta fresca. Acelero também ladeira abaixo. A vida não tem pressa, mas eu tenho.

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