Usina fechou estrada tradicional no norte para expandir canavial. Crianças chegaram da escola com fome devido ao desvio
Somente depois de denunciada aos órgãos de defesa dos direitos humanos, a Usina Alcon – Companhia de Álcool Conceição da Barra iniciou obras de alargamento e cascalhamento de uma estrada alternativa à que tradicionalmente é utilizada por comunidades do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, em Conceição da Barra, norte do Estado.
O relato vem da Associação Quilombola de Mudas Nativas e Agricultura Orgânica do Angelim 2 (Aquimuna), que pediu providências ao Ministério Público Federal (MPF) – processo PRM-SAM-ES-00000642/2023 – à Secretaria e ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (SEDH e CEDH), à Defensoria Pública, à Secretaria Estadual da Casa Civil e ao mandato da deputada estadual Iriny Lopes (PT).
Flavia dos Santos, moradora local, conta que a via tradicional foi fechada pela empresa na última sexta-feira (17), com a abertura de uma vala que impossibilita a passagem de qualquer veículo, mesmo moto. O objetivo é expandir o monocultivo de cana-de-açúcar no local, cujo plantio está sendo feito por maquinário.
A interrupção, ressalta, aconteceu sem qualquer aviso aos moradores, causando diversos transtornos nos últimos dias, incluindo, na véspera do Carnaval, um atraso de mais de uma hora no retorno dos estudantes para casa após a escola, devido ao desvio que o transporte escolar precisou fazer.
Após as primeiras medidas, o transporte conseguiu realizar uma viagem em tempo regular nesta quinta-feira (23), mas ainda é preciso melhorar mais para que o trânsito aconteça com segurança em dias de chuva.
“Tiveram que dar a volta numa ladeira toda acabada com os alunos. Devido à quantidade de chuva que deu, a lama da ladeira tinha descido toda. O transporte escolar teve que procurar alternativa para chegar. Criança de creche de dois anos até ensino médio. Passou aqui em casa uma e meia da tarde, as crianças com fome, por causa de uma irresponsabilidade, porque a Alcon, empresa que está dominando o plantio de cana no município, quer plantar mais na estrada. Estão fechando a estrada para plantar cana”, relata Flávia.
“Todo esse final de semana a gente ficou ilhado porque as pessoas não conseguiram passar na ladeira. Várias pessoas ficaram atoladas, tiveram que ter ajuda para tirar o carro. Teve pessoas que foram e voltaram, porque não tinha como passar. E teve pessoas que ficaram perdidas, procurando outra forma de chegar na cidade. Foi um transtorno! Quando chega a ladeira, fica sem condições. A estrada que eles fecharam é um desvio dessa ladeira, um lugar que você consegue passar com ou sem chuva”, conta.
Plantio mecanizado
“Eles estão fechando ali para o talhão de cana deles ficar mais nivelado, porque as máquinas não cortam com muita curva. Estão pensando só neles mesmo, só aumentar a cana e melhorar para eles”, repudia.
Em áudio atribuído a Nerzi Dalla Bernardina Junior, um dos donos da Alcon, o plantio de cana na estrada quilombola tradicional é confirmado. “Aquela estrada é muito curvada, muito torta no meio do canavial, de vez em quando tinha uns acidentes. O projeto nosso lá, como estamos plantando com máquina, precisa ser mais reto”, diz a um morador local que o questionou sobre o fechamento da via.
“Eu chamei a turma lá, já, começaram a trabalhar acho que sábado [18]. Nós vamos abrir aquela ladeira, cascalhar ela todinha, abrir, deixar bem larga mesmo, porque vai ser a estrada nossa principal de saída de cana. A gente não vai sair mais por cima, por aquela que acabou. Na estrada da Barra também nós vamos reabrir, dar uma cascalhada. Vamos fazer uma estrada boa para a comunidade e para a gente sair com cana também por ali. Se não ficar legal, vamos tentar outro esquema, uma estrada por cima. Mas por enquanto vamos tentar lá. Que fica até mais perto, lá por cima tem muita curva. Nós vamos ajudar, vamos atrapalhar ninguém não, falou parceiro?”, acrescentou o empresário.
Risco
“O desvio não é tão longe, porém tem duas ladeiras que fica impossível de passar quando chove. Agora estão fazendo a ladeira, depois de toda essa movimentação. Até perguntei: por que não fez a ladeira primeiro antes de fechar lá? A gente precisa passar por todo esse transtorno primeiro?”, questiona.
Segundo Flávia, a vala, localizada no meio de uma curva, continua sem sinalização. “Quem tem costume de passar ali e não sabe, pode sofrer um acidente, porque está numa curva, ninguém espera um negócio daquele”.
Direitos violados
A Alcon é uma das empresas do agronegócio que usurpa o território quilombola do Sapê do Norte, que se estende também pelo município de São Mateus, reunindo mais de trinta comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares e que aguardam a titulação de suas terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A Suzano é outro algoz histórico, que seguidas vezes impõe restrições ao direito de ir e vir e de abordagens violentas aos moradores. Uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) obteve uma primeira decisão judicial favorável, em que a papeleira é acusada de grilagem de terras no território quilombola.
Na Mesa de Resolução de Conflitos mediada pela SEDH, no entanto, a empresa não aceita recuar dos plantios instalados sobre as terras tradicionais, continua avançando sobre as comunidades e impedindo os plantios de alimentos, além de lançar grandes volumes de agrotóxicos e secar os recursos hídricos. Tudo com a complacência do Estado.