Mulheres quilombolas voltam do 8 de março sem atendimento pelo governador e nem sequer da gestora da SEDH
O racismo institucional tem raízes e ramificações nos lugares mais impensáveis. No Espírito Santo, até mesmo na Secretaria de Estado de Direitos Humanos (Sedh). A avaliação é do movimento de mulheres quilombolas do Sapê do Norte, território ancestral localizado entre São Mateus e Conceição da Barra, no norte do Estado.
A percepção, que já vem desde o mandato anterior de Renato Casagrande (PSB), se intensificou durante a mobilização referente ao 8 de março deste ano, quando as mulheres não foram recebidas pelo governador na terça-feira (7), conforme solicitado em documento protocolado no Palácio da Fonte Grande dias antes, e nem sequer foram atendidas pela secretária de Direitos Humanos, Nara Borgo.
O documento foi protocolado juntamente com representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), mas somente essas duas representações foram recebidas pelo governador, no dia 6 de março, antes da data solicitada e para a qual as quilombolas estavam programadas para mobilizar o deslocamento do norte do Estado até a Capital.
Liderança na Comissão Quilombola do Sapê do Norte, Flávia Santos conta que no dia 7, as mulheres receberam a informação de que o governador iria atendê-las no dia seguinte, já que na data solicitada no documento, ele estaria envolvido com a visita do ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes.
Na quarta-feira (8), então, na porta do Palácio Anchieta, ao procurarem se informar do horário em que aconteceria a reunião, foram recepcionadas por um sargento e um tenente da Polícia Militar. “A gente se sentiu bem humilhada por ser recepcionada por dois militares. Por que, se tem a Secretaria de Direitos Humanos e outras que dialogam com a gente? Militares querem impor autoridade e a gente se sentiu criminalizada nesse sentido”, relata Flávia.
Apenas um gerente da SEDH chamado Renato foi falar com as mulheres, conta a líder quilombola, mas sem nenhuma resposta para os questionamentos e nenhuma autonomia para decidir sobre qualquer encaminhamento.
“A secretária não apareceu, como sempre. Ela sempre faz isso, nunca fez nenhum atendimento conosco, sempre negou a nossa existência, todos esses anos. A Nara [Borgo] está se mostrando para nós, mulheres pretas quilombolas, uma secretária de Direitos Humanos racista. Ela sabe que somos ameaçadas e não dá nem um pingo de visibilidade para a nossa presença ali, está se mostrando uma secretária que ao invés de proteger nossos direitos, está violando também, como os que já fazem isso o tempo todo conosco”, repudia.
Após os não atendimentos, depois de dois dias de espera em frente à sede do governo estadual, as mulheres quilombolas se reuniram para avaliar o acontecido e decidir novos passos da luta. Sobressaiu também, nessa análise, o racismo do próprio governador Renato Casagrande.
“Ele novamente mostrou a que veio. Está no terceiro mandato e a única vez que falou com as quilombolas foi no ano passado, quando fomos junto com o MST e fizemos um protesto com grande número de pessoas. Como ele queria ‘limpar’ a frente do Palácio, nos atendeu. Mas nenhuma das pautas que apresentamos para ele avançou. Inclusive essa pauta que protocolamos semana passada é a mesma de 2022. Nós aqui continuamos sem água, energia e terra, e ainda ameaçados, e nada se faz”, indigna-se.
Outra crítica no mesmo sentido vem do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (Idaf), aponta Flávia. Depois de anos de insistência, pedindo para que a autarquia apresente um mapa que identifique as terras devolutas dentro do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, foi somente com um pedido oficial da Defensoria Pública do Estado (DPES) que o mapeamento foi apresentado, e somente para as defensoras que atuam no caso e não para as comunidades quilombolas.
“As doutoras Marina e Samanta viram o mapa. O Idaf fez o mapeamento de onde tem terras devolutas no Sapê, mas nessas terras, só colocou eucalipto, não mostra nenhuma comunidade quilombola. Disse que tem que fazer outro diagnóstico para saber onde ficam as comunidades. Para você ver o nível de exclusão do Estado. Nós estamos aqui há mais de 300 anos, temos 32 comunidades certificadas, mas eles não sabem onde nós estamos, só sabem dos eucaliptos”.
A identificação, assinala Flávia, é fundamental para que o governo do Estado transfira essas terras para o as comunidades. “Até para cumprir aquela lei que o próprio Casagrande criou quando ele era secretário de Agricultura”, pontua, referindo-se à Lei n.º 5.623, de 9 de Março de 1998, último ano de governo petista de Vitor Buaiz.
A lei afirma que “o governo do Estado reconhece a propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos Quilombos, em atendimento ao artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal” e estabelece a obrigação do Poder Executivo em “emitir os títulos respectivos aos proprietários remanescentes de quilombos que comprovem a ocupação das terras devolutas”, devendo os órgãos estaduais da administração direta, incumbidos das políticas agrárias e agrícolas, destinarem “parte dos respectivos orçamentos para o cumprimento do disposto nesta lei”.
Flávia conta que as mulheres receberam um indicativo de uma reunião com o governador Renato Casagrande em abril, mas não foi dita ainda em que data. “Estamos muito abatidas com todo esse descaso, mas esperamos ser recebidas em abril e reapresentar nossa pauta”.
Compartilhando dessa expectativa de atendimento no próximo mês, a também liderança quilombola na Comissão do Sapê do Norte, Luzia Serafim Blandino, reforça a necessidade de resolução para questões primordiais, como energia elétrica, água, segurança e conflito territorial, especialmente no que se refere à violência patrimonial e jurídica da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose).
“Pedimos na Mesa de Resolução de Conflitos que a empresa tire os eucaliptos de dentro das nossas áreas certificadas, mas ela continua replantando, não deixando espaço para as comunidades se desenvolverem. Precisamos também de energia elétrica, de água, de segurança”, elenca.
Em abril, a expectativa é de que finalmente haja avanços. “A gente tem que saber do governador por que as coisas não andaram e quando vão começar a andar”. A luta, afirma, não para. “Já vem dos nossos antepassados lá atrás. E nós continuamos com ela e vamos continuar, parece que nunca acaba”.